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O Complexo de Jocasta



Numa tarde bem gostosa, dessas de outono, em que o dia está ensolarado mas não está quente, Nico acordou do cochilo que sempre tirava depois do almoço. Bocejou, espreguiçou-se e foi falar com seu pai, sobre um assunto que o estava incomodando.

Roberto, seu pai, ou Bob-pai, como Nico costumava chamá-lo, estava na oficina e também acabara de acordar. Ainda estava deitado, ao sol, tentando se animar para fazer qualquer coisa. Até então, a preguiça estava vencendo.

- Bob-pai.

- Oi, filho.

Trocaram algumas palavras ainda antes de Nico abordar a questão que queria resolver.

- É o seguinte, Bob-pai. A mãe está dando em cima de mim. De novo, você sabe.

- É, eu sei. Andei reparando. É o jeito dela. Ela gosta de você.

- Mas Bob-pai, você acha normal ela gostar desse jeito de mim?

- Eu, se fosse você, aproveitava. Se eu estivesse na sua idade, quero dizer.

- Mas ela é minha mãe, Bob-pai.

- E daí? Todo mundo pega a mãe. Elas mesmas querem. Você não teve esse problema com sua irmã. Nem eu, aliás – acrescentou Roberto, sorrindo e com um aspecto nostálgico no rosto.

- Mas com a Brenda foi só daquela vez. Eu era virgem, estava angustiado.

- E continua, pelo visto.

- Pai, eu preciso saber quem eu sou. Não posso ser filho, irmão, amante, marido, tio, tudo ao mesmo tempo. Não pode ser assim. Cada um precisa ter um lugar, saber quem é.

Essa discussão era muito difícil para Roberto. Ele não tinha criado seu filho pra ser assim, confuso, inconformado, triste. Na verdade, ele mal tinha criado seu filho, passando boa parte do tempo correndo atrás de Brenda, Carolina, Zizizinha, Marilu ou, mais recentemente, dormindo o tempo todo na oficina.

- Filho, vou lhe contar uma história, disse assumindo um ar professoral. Uma história muito antiga, do teatro grego, um mito criado pelos humanos.

Nico, Roberto e toda a família eram mistos de vira-lata com dálmatas; bonzinhos que só vendo. Nico deitou-se de barriga para ouvir. Era sua posição favorita.

- Era uma vez, começou o pai, um príncipe que tinha se perdido da família quando bebê. Ele por acaso foi adotado por outro rei, de outro lugar, e continuou sendo príncipe nesse novo reino. Quando ele cresceu, estava viajando e se meteu em uma confusão na estrada e acabou matando um homem. Tempos depois, ele se casou com uma rainha viúva e virou rei. Ele gostava muito dessa mulher, ela era mais velha, tinha até idade pra ser a mãe dele, mas o amor é assim mesmo. Você está entendendo tudo até aqui?

- Sim, respondeu Nico, que só não tinha entendido ainda onde Roberto queria chegar com aquela história.

- Enfim, esse príncipe, que agora era um rei muito feliz, veio a saber por um vidente cego que na verdade o cara que ele matou na estrada era o antigo rei daquela terra, o antigo marido de sua esposa. E o pior de tudo, saca só, é que o rei antigo era na verdade o pai dele. E a mulher, claro, a sua mãe.

- E o que aconteceu?

- Bom, a mãe se matou. O filho, que deveria ser príncipe e agora era rei, furou os próprios olhos e saiu andando descalço pelo mundo que nem um mendigo. Ficou com os pés todos esfolados. Os filhos que o príncipe tinha tido com a própria mãe se mataram entre si; por várias gerações só houve brigas, traições, desgraças. Uma tragédia, disse Roberto para finalizar, rindo.

- Mas pai, não entendi o que eu tenho a ver com isso.

- Meu filho, o importante é você não saber quem é a sua mãe. Aproveita, faz de conta que você é de outro reino e pega logo a velha, que ela está querendo. Aliás, é bom você tirar da cabeça isso de saber quem você é, porque sempre dá confusão. Não quer que nossa família morra, não é?

- Não, mas...

- Se quer saber quem é, eu te digo: você é adotado. Não é verdade, mas se você quer tanto uma identidade, pega essa. Se quiser ir mais longe, vai querer dizer quem cada um é, o que cada um pode ou não pode fazer, vai querer criar regrinhas e vai reprimir todo mundo. Afinal, essa é a vantagem de ser cachorro: a gente pega geral. Mãe, filha, irmã, sobrinha, cunhada. Não importa quem elas são ou quem a gente é.

Nesse momento, chegava na oficina Júnior, que era o filho do mecânico. Ele adorava aquele cachorro que, apesar de velho, ainda era muito brincalhão. Jogou uma bolinha velha de tênis e Roberto foi na hora atrás dela, terminando o papo com seu filho.

Nico, de quem Júnior não gostava muito, ficou amuado e foi embora dali. No caminho, sentiu um pouco de inveja dos humanos. Eles não sentem a sua angústia: sempre sabem o que fazer.


Por Thiago F. * 21:27 * quarta-feira, 18 de junho de 2008