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Para ler ouvindo Ain't no sunshine, do Michael Jackson. Ontem, à tardinha, bem naquela hora que o dia ainda não tinha acabado mas a noite já insinuava, Guilherme saiu. Tinha tomado lanche cedo, como era costume da sua família. Estava pronto para a rua, ou pelo menos era o que sentia, apesar de não saber bem o que isso significa. Ultimamente, não sabe o que várias coisas significam. Mas finge que sabe. Saiu de banho tomado, perfume do Boticário e as roupas novas que comprou preocupado em parecer bonito. Já não tem certeza se é bonito, por isso faz questão de parecer - mais uma das coisas que não entende e que finge ter sob controle. Por isso também o gel. Um pouco antes, Jane também tinha saído e estava à toa na varanda da casa em que costuma passar as férias. Na sua família, é a caçula. Jesse, a mais velha, sempre a faz tomar banho antes. Assim, pode ficar na internet e, ao mesmo tempo, apressar Jane com seus vai-logos. Quer fazer tudo ao mesmo tempo. Jane não se incomoda, ela é bem mais calma. É dessas meninas que sentem certa conexão com o mundo, meio racional, meio mística, que fará com que venham a ler alguns livros bons e a escrever alguns poemas ruins. Gosta de estar fora nessa hora, quando ainda não está frio mas já promete. Além disso, o entardecer promete algo mais que um friozinho gostoso, alguma outra coisa que ela nunca sabe bem o que é. Naquele momento, ela podia sentir o sol baixar e seus agasalhos novos a aquecerem. Isso é uma das muitas coisas que tem em comum com Guilherme e também com toda a turma da rua: roupas novas. Que também não são, de certa forma, tão novas, já que tentam imitar o estilo dos jovens dos anos 90. Mas isso ninguém da rua sabe. Guilherme viu Jane sozinha e, sem saber por quê, deu alguns passos para trás. Jane o viu e sorriu. Já não podia mais recuar. Foi em sua direção. Ela saiu para a calçada. Guilherme atravessou a rua de olhos fechados, tentando imaginar quem teria armado aquela para ele. Concluiu que foi a turma toda. Está apaixonado por Jane desde dezembro; não tinha dito nada a ninguém, mas está na cara. Tentou disfarçar a insegurança pulando pelos azulejos brancos da calçada. Jane, por sua vez, é tonta ou se faz de. Tinha sorrido muito simpaticamente, com o sorriso mais ingênuo que podia, que é o que a deixa mais bonita, segundo o julgamento de Guilherme. Bento não concorda com isso, nem acha Jane bonita. Prefere jogar bola. Guilherme apostava que tinha sido ele, liso, malandro, que armara aquela situação. Jane, na verdade, nunca tinha pensado em Guilherme como outra coisa que um amigo até aquele momento. Nem imaginou tratar-se da armação de alguém da turma (a bem da verdade, não era). O modo como ele veio, no entanto, ou a temperatura que fazia, ou a luz baixa, ou tudo isso, ou nada disso - provavelmente nada disso, até porque ela continuou sem pensar - acabou fazendo com que algo surgisse: uma sensação, um sentimento, uma curiosidade, uma coisa nova. Numa palavra: Jane sentiu-se confortável. Ela é um ano mais nova que ele, mas muito mais esperta. Agiu naturalmente, talvez. Somente agiu. Teve a iniciativa de falar. - Nessa época é bom que faz silêncio, né? - É, nossa, saí de casa porque meu irmão fica ouvindo rock, muito barulho, sabe? - Sério? Adoro rock. - Eu também! Eu também. Mas... não nessa época, eu acho. - Deixei meu mp3 em São Paulo... tô sem nada pra ouvir. - Eu posso te gravar um CD. - Legal. - É. - Mas eu quis dizer que no inverno não tem aquelas cigarras chatas que ficam fazendo barulho no verão. Você percebe? - Ah, é. Muito chatas. - Vamos na praia amanhã? - Vamos. Ah, mas manhã tem jogo... - Ah, você vai assistir. - Podemos ir antes, se você quiser. Acho que nem quero ver o jogo. Não ligo pra futebol. - Você joga quase todo dia, né? - É, eu gosto de jogar. Não de ver. Só às vezes. Não sei. - Vocês não jogam mais na rua? - Não... só na praia. Compramos umas traves. A gente não brinca mais. - Já tinha percebido. No começo do ano, estranhei que ninguém mais me chamou para o esconde-esconde. - A gente pode marcar um. - Não. Eu gostei. Não queria brincar. Não gostava quando tudo que vocês faziam era jogar bola e brincar de esconde-esconde. Tipo no ano passado, no inverno também. - É, já tava na hora, né? - Acho que sim. - As coisas mudaram mesmo, eu acho. - É. - Nossa! Um ano atrás, a gente correndo que nem bobo por aqui. - Ou seis meses. No verão, vocês daqui ainda vacilavam. - É, acho que as coisas mudam. Sabe o que eu penso? - O quê? - Às vezes eu penso coisas de dia que eu não penso de noite. E vice-versa. Tipo. A gente muda. Não sei bem explicar. - Eu sei. - Sério? - Sério. eu entendi. - Legal, né? - Eu acho. Por isso essa é o melhor hora de todas. Quando é escuro e claro. Sabe? - Também acho! Vai ver.. vai ver que é a mesma coisa com o inverno e o verão. - Pode ser. Não pensei nisso. - Que viagem. - Haha. - Mas pensar que um ano atrás a gente só queria saber de brincar. Dá vergonha. O que será que aconteceu pra mudar tanto? - Você não sabe? - Não. O quê? - O Michael Jackson morreu. A mãe de Jane apareceu na varanda e a avisou que tinha pedido uma pizza. Disse que ela poderia chamar o amigo, se ele quisesse comer. Guilherme já tinha tomado lanche, mas decidiu aceitar. Já estava escuro. |