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Terceiro G.H.



Para ler ouvindo There was magic, then..., de Gentle Waves.




Quando Tarso perecebeu que estava se afastando de Margareth, deu a ela de presente um livro: A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Achou que seria uma prova de amor ou, ao menos, um meio de se reaproximar de sua esposa naquele momento de frieza. Tarso estava terminando sua tese de doutorado. Esse fato, somado à sua profissão de professor, tomava quase todo o seu tempo, o que explicava, de certa forma, a sua ausência.

Esta, no entanto, é uma história sobre Margareth. Ela tinha um emprego novo, no qual ainda não tinha feito amizades. As amizades antigas não eram mais tão próximas como nos tempos de faculdade. Sentia-se só, e um livro parecia-lhe uma companhia insuficiente. Conhecia o marido que tinha, absorto, e não adiantaria reclamar.

Havia, aliás, muito do que reclamar. Por exemplo, do fato de o livro ter sido somprado em um sebo. Ranhuras na lombada, capa desbotada. Quanta falta de consideração da parte dele. Margareth odiava livros usados. Era como se não fossem mais puros, por já terem sido lidos. Páginas amarelecidas e cheiro de velhice também contavam pontos negativos. Margareth agradeceu com um beijo na testa e um sorriso amarelo, que Tarso não percebeu, e guardou o livro na gaveta.

Algumas semanas se passaram antes que ela abrisse o livro pela primeira vez. Chegava em casa sempre cansada e tinha ainda que arrumar a casa, preparar a comida do marido intelectual. Quando sobrava tempo, desabava em frente da televisão. Ocasionalmente, telefonava para o irmão, mas era raro, porque não suportava a cunhada, que, na maioria das vezes, era quem atendia a ligação.

Tarso fizera uma lacônica dedicatória: "À minha paixão". Não estava assinada, e Margareth só soube que era destinada a ela porque reconhecia a letra do marido. Como se não bastasse, a dedicatória era seguida pelo carimbo com o nome do antigo dono do livro: Ricardo M. Vasconcelos. Outro motivo para odiar livros de sebo. Esse fato da folha de abertura foi suficiente para que Margareth tornasse a guardar o livro na gaveta. Estava realmente chateada.

Mais alguns dias se passaram e Margareth voltou a dar uma chance ao livro. Achou estranho a história começar com diversos travessões, como se fossem reticências que indicassem que o leitor pegava o bonde andando. Margareth não era intelectual como o marido, mas já tinha tido uma boa dose de literatura. Apesar disso, aquele livro era diferente. Uma série de digressões sobre a vida, sobre arrumar a casa, sobre uma barata. "Uma barata?", pensou. Nunca tinha lido Kafka.

Leu quase trinta páginas e, ao folhar uma delas, deparou-se com um trecho marcado com caneta hidrográfica. Ficou puta: "Que tipo de cretino acha que meia dúzia de frases é mais importante que o todo?". O livro usado, presente de grego, aprontara mais uma com ela. Estava tão zangada com aquilo que pulou direto para a parte sublinhada para saber que pérola Ricardo M. Vasconcelos - só podia ter sido o babaca do carimbo - tinha encontrado no texto. Era a seguinte:

Dá-me a tua mão desconhecida, que a vida está me doendo, e não sei como falar - a realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas.

Parecia até que Ricardo M. Vasconcelos queria se dirigir a alguém de fora do texto com aquelas palavras, uma amante, por exemplo. O trecho é bem escrito, mas Margareth sentia que não havia necessidade de macular o livro daquela forma. Grifos comprometem demais a leitura seguinte. Desconcentrada do texto, colocou ali seu marcador de páginas (pois era contra dobrar folhas para marcar onde havia parado). Ainda assim, ficou pensando: "Por que Ricardo M. Vasconcelos precisou sublinhar aquele trecho - justamente aquele trecho?". O que havia ali de tão importante para aquela pessoa desconhecida?

No dia seguinte, leu mais umas vinte páginas, até que encontrou outro trecho marcado no livro. O trecho sublinhado dessa vez era o seguinte:

Eu, que antes vivera de palavras de caridade ou orgulho ou de qualquer coisa. Mas que abismo entre a palavra e o que ela tentava, que abismo entre a palavra amor e o amor que não tem sequer sentido humano - porque - porque amor é a matéria viva. Amor é a matéria viva?

Maldito Ricardo M. Vasconcelos. Outra vez interrompia a leitura de Margareth com sua caneta marca-texto azul. Azul! "Quanta falta de respeito", pensou ela. Então, deu uma rápida folheada no livro todo para ver se haveria outras marcações. Isso era algo que Margareth nunca fazia: folhear. Sabia muito bem que os livros não eram ilustrados e, portanto, não haveria nada para ver ao passar as páginas uma por uma. Outro motivo, mais importante, é que não queria correr o risco de ler sem querer algum trecho posterior, o que poderia arruinar sua leitura. Mas desta vez folheou e constatou que havia mais grifos. Decidiu que a cada vez leria até onde o texto estivesse marcado. Afinal, sabia que as intervenções de Ricardo M. Vasconcelos não a permitiriam seguir adiante.

No dia seguinte, Margareth interrompeu sua leitura na página 92:

E a mim - quem me quereria hoje? quem já ficara tão mudo quanto eu? quem, como eu, estava chamando o medo de amor? e querer, de amor? e precisar, de amor? Quem, como eu, sabia que nunca havia mudado de forma desde o tempo em que me haviam desenhado na pedra de uma caverna? e ao lado de um homem e de um cachorro.

Como Tarso estava com a mente ausente, seu corpo também não se fazia presente. Margareth estava carente. Exceto pelo cachorro, o texto parecia falar dela. E, ainda assim, havia sido escolhido por Ricardo M. Vasconcelos. Já não era totalmente um deconhecido para ela, pois foi capaz de encontrar um critério nas seleções dele: é um homem apaixonado. Apaixonado e solitário. Um verdadeiro romântico. O oposto de Tarso.

O silêncio entre os dois ajudava Margareth a imaginar como seria viver com um homem romântico, alguém a quem pudesse realmente se abrir. A inteligência de Tarso já se tornara um obstáculo que ela não podia nem queria superar. Porque, ainda que quisesse, Tarso estaria sempre com a razão: é a maldição de ser um intelectual. Margareth compreendia tudo isso muito bem. Não havia nada que pudesse dizer a Tarso. Palavras somente magoariam neste momento da vida. Passara o momento dos poemas entre os dois.

Vou te dizer o que nunca te disse antes, talvez seja isso o que está faltando: ter dito. Se eu não disse, não foi por avareza de dizer, nem por minha mudez de barata que tem mais olhos que boca. Se eu não disse é porque não sabia que sabia - mas agora sei. Vou te dizer que eu te amo. Sei que te disse isso antes, e que também era verdade quando te disse, mas é que só agora estou realmente dizendo. Estou precisando dizer antes que eu...

Ricardo M. Vasconcelos compreendia muito bem Margareth. Suas palavras serviam-lhe perfeitamente, eram como música para seus ouvidos. Já pensava nele como o homem da sua vida, aquele com quem deveria viver. Começou a ter ideias. Tomou uma decisão. Só não sabia como fazer. Terminou o livro e precisava de um plano. Consultou a internet. Nada no Orkut ou no Facebook. Google. Apenas um endereço e um telefone no site da comapanhia telefônica.

- A senhora Vasconcelos, por favor?
- Quem quer saber?
- É... da Avon.
- A senhora Vasconcelos não mora mais aqui.
- Obrigada, senhor.

"Que voz!", pensou.

O sinal estava dado. O príncpe encantado estava sozinho. Bastava ela se apresentar, dizer o quanto se identificava com ele, com aquelas passagens. Eram almas gêmeas. Do corpo dela ele não poderia reclamar - estava ainda em pleno vigor físico com seus 28 anos.

No prédio em que ele morava, ela passou pela rampinha que levava aos elevadores e avisou o porteiro que estava com pressa para falar com o seu Ricardo, que ele a havia chamado. Ela subiu, tocou a campainha.

Se eu abandonar o que foi uma vida toda organizada pela esperança, sei que abandonar tudo isso - em prol dessa coisa mais ampla que é estar vivo - abandonar tudo isso dói como separar-se de um filho ainda não nascido. A esperança é um filho ainda não nascido, só prometido, e isso machuca. Mas sei que ao mesmo tempo quero e não quero mais me conter. É como na agonia da morte: alguma coisa na morte quer se libertar e tem ao mesmo tempo medo de largar a segurança do corpo. Sei que é perigoso falar na falta de esperança, mas ouve - está havendo em mim um alquimia profunda, e foi no fogo do inferno que ela se forjou. E isso me dá o direito maior: o de errar.

Um homem numa cadeira de rodas abriu a porta.

- Sim?
- Ricardo?
- Sim.
- Eu...

Margareth começou a chorar. Sentia-se mal. Sabia não poder amar um cadeirante. Ricardo pediu que entrasse e disse para servir-se de água. Ela lhe contou sua história, mostrou-lhe o livro.

- Não esperava que eu fosse... assim, não é? O homem real e o ideal não são o mesmo.
- ...
- Além do mais, não fui eu quem fez as marcações. Odeio isso.

Margareth esboçou um sorriso, como se o entendesse, mas tornou a chorar.

Chegou tarde em casa. Tarso estranhou. Fez um esforço tremendo e foi falar com ela. Ela reclamou da sua ausência. Da falta de vida entre os dois. Da falta de vida no geral.

E não caminharei "de pensamento a pensamento", mas de atitude a atitude. Seremos inumanos - como a mais alta conquista do homem. Ser é ser além do humano. Ser homem não dá certo, ser homem tem sido um constrangimento. O desconhecido nos aguarda, mas sinto que esse desconhecido é uma totalização e será a verdadeira humanização pela qual ansiamos. Estou falando da morte? não, da vida. Não é um estado de felicidade, é um estado de contato.

Margareth contou o ocorrido a Tarso.

- Mas fui eu! Eu te dei o livro daquele jeito. É o meu presente! Como pôde pensar...?

Margareth chorou novamente. O estranho por quem estava apaixonada era, no fundo, o estranho que supostamente amava - o estranho com quem havia se casado. E, pela segunda vez naquele dia, Ricardo M. Vasconcelos estava certo: o homem real e o homem ideal não eram o mesmo.


Por Thiago F. * 20:22 * sábado, 18 de julho de 2009