Um cara descolado
(Escrito a partir de uma leitura errada de As Armas Secretas, de Julio Cortázar)
Para ler ouvindo Freeze the Saints, de Stephen Malkmus and the Jicks
- Eu sou música.
Certas pessoas conseguem ser interessantes na primeira frase. Com uma introdução dessas, todo contexto se perde: onde estávamos, quem éramos. Ela disse que era música antes mesmo do seu nome: Raquel. Música. Como uma pessoa pode ser música? A realidade voltou à cena e me arrancou de meus devaneios para me responder.
- Flautista. Não, aquela assim. Transversal.
Música. Feminino de músico. Ela era música.
Como estava bêbado, consegui um e-mail antes de ir embora.
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Um encontro. Exposição de Cartier-Bresson. Tenho um certo problema com timidez. Por isso tive a péssima ideia de levar comigo Pedro. Um cara descolado.
Estamos olhando as fotos. Pedro fala, gesticula, aponta.
- Tá vendo este lugar?, eu passei por aqui quando fui à França.
- Jura? Eu estive em Paris e Marselha - responde Raquel.
- Marselha é demais. E olha essa casinha aqui, parece muito o meu maternal.
Raquel ri. Não levou dez minutos para perceberem o quanto têm em comum. E eu, que tenho em comum com ela? Com ele? Nada. Quase não falo. Dou risadas, não quero parecer chato. Mas sem súvida, a estrela aqui é Pedro, e eu sou só o coadjuvante. Não consigo parar de pensar que ele está estragando as minhas chances, se é que eu tinha alguma.
Talvez eu devesse ir embora. Sinto claramente que estou sobrando. Acontece que esse encontro é meu. Se eu for, ele vai junto, ninguém ganha nada. Pedro, o que você está fazendo aqui? Onde eu estava com a cabeça? Vá embora, você não tem compromisso? Deixe-me sozinho com Raquel. Será que eu conseguiria entretê-la tão bem quanto ele? Não tenho sacadas, não arranco sorrisos. Por outro lado, enquanto ele macaqueava com sua simpatia, eu estava aqui pensando. Afinal, alguém aqui tem que pensar. É, espero, meu trunfo. Portanto, duzentas e quarenta fotos depois, deponho:
- Para mim, somente a fotografia em preto e branco pode ser tida como arte. Jamais a colorida. Isso porque a fotografia colorida revela somente aquilo que o olho já vê naturalmente. Tem, no máximo, um ponto de vista privilegiado. Já a fotografia pb - em preto e branco - é justamente o oposto. Porque com ela, você vê o que ninguém vê naturalmente, a não ser pessoas que não enxergam cores, mas isso não é a regra. Na foto pb, temos um jogo de luz e sombras, do preto contra o branco, do campo do cinza. O que não é natural. E a arte, antes de tudo, é o que não é natural, é o que é feito, por isso se diz: artifício. Mas não é só o fazer: é também o produto, o resultado. Então é preciso ver o que ninguém vê, porque só ali reside o que é belo. O belo está escondido, sempre. Como na escultura. Uma estátua dentro de um bloco de pedra. Na fotografia colorida não, nela só se tem o apertar, o resto é como estava lá quem pôde ver. É a revelação do que já está revelado. É só fazer. Não se alcança nada novo. Por isso também não vejo a pixação como arte: valoriza-se o fazer, o risco e a aventura de pixar pendurado de cabeça para baixo num prédio de vinte e cinco andares. Mas e o produto? O que fica no mundo é sujo, e o que é sujo não pode ser arte. Preciso de água.
E de um saco de supermercado para esconder a cara. Que vergonha. Do que estou falando? Eu devia é ter ficado quieto.
- Eu gosto de filmes pb, mas nem sempre tô com saco pra ver.
Pedro. Um cara descolado.
Onde é que eu estava com a cabeça? Ver o belo que ninguém vê, o que está escondido? Arte, fazer, produto? Eu não entendo nada de arte. A verdade é que enquanto eu achava que falava de arte estava falando de mim mesmo. Porque tenho que acreditar que tenho uma beleza que ninguém vê. Preciso de uma artista pra me tirar de dentro de mim. Como se eu fosse a estátua dentro da pedra. Que horror. Estou mais para um detento numa solitária, numa prisão feita de mim mesmo. Separado do mundo por uma parede de vidro, me comunicando por um telefoninho. Pedro é meu telefoninho hoje. Quando julguei poder sair de mim mesmo. Sou John Malkovitch dentro de John Malkovitch. John Malkovitch, John Malkovitch, John Malkovitch. Preciso de álcool.
Quando volto os olhos ao mundo, estamos tomando cerveja num bar. Conveniente. Pedro me conhece bem, sabia do que eu precisava. Já Raquel parece não ter dado conta dos momentos em que estive absorto. Ele é um sucesso. Não tira o sorriso de seus lábios. Que faço? Ir embora ainda é uma opção, mas cada vez pior.
Vou ao banheiro. Pedro vem junto.
- O que você está fazendo? Deixou ela sozinha.
- Relaxa.
- Dê um pouco de atenção a ela. Você está se dando muito bem, aliás.
- É, eu acho que ela está a fim de você.
- Você está viajando. É você quem está fazendo sucesso. Vai fundo.
- Sério, ela deu a entender.
- Em que momento? Eu estava lá e não vi nada.
- Você precisa prestar mais atenção.
- Ou você. Porque era para você que ela estava olhando.
- Olha só, você não quer ficar com ela?
- Claro.
- Então.
- Então o quê? É de você que ela está a fim.
- De mim?
- Claro.
- É o que você acha, não ela.
- Não sei por que você veio.
- Ah, você sabe por quê.
Estamos no lavabo. Pelo espelho, vejo que Raquel se aproxima.
- Com quem você está falando?
- Com ninguém, ora. Não sou louco.
Raquel ri mais uma vez.
- Estava só... cantando.
- Pretendia me deixar esperando?
- De jeito nenhum. Vem.
Por Thiago F. * 07:54 *
segunda-feira, 8 de março de 2010