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Para ler ouvindo Badhead, do Blur. Uma leve brisa entra no quarto pelas frestas da janela de madeira e suspende por um instante a cortina no ar. A luz da manhã aproveita para invadir um pouco mais o cômodo. O dia deve estar ótimo lá fora. Quente, sem dúvida: estou nu e confortável. Mudo de posição e tento abraçar a pessoa ao meu lado, mas só encontro o lençol amontoado que deixamos de usar durante a noite. Jéssica, como sempre, levantou-se antes de mim. Ainda não é a hora de me levantar. Não que seja muito cedo, pelo contrário. Aliás, eu sempre me levanto tarde, segundo o parecer de Jéssica. Faz parte do nosso ritual: ela ou me traz o café na cama, cheia de amor e romantismo, do jeito que eu adoro, ou me faz levantar com toda sua indelicadeza, num rompante matinal que envolve a abertura da janela, batidas de palma e esporros sobre minha preguiça. Seja qual for a cena, tem grande importância para mim: ela não conversa comigo sobre o sexo, como se fosse uma coisa suja, e, por isso, o único signo que ela me dá para saber se gostou da noite passada é seu comportamento matinal. Jéssica sabe fingir muito bem o orgasmo, a ponto de ser indistinguível de um autêntico. Só pude descobrir esse seu talento porque ela me confessou naquela discussão ridícula que tivemos há uns meses. Até hoje não entendo por que ela finge. Minha auto-estima sexual realmente não depende do fato de fazê-la gozar. Não porque não me importe que ela goze, mas simplesmente porque posso viver tranquilamente com o fato de não fazê-la chegar lá sempre. Não sou uma máquina nem um prestador de serviços; não me sinto obrigado, nem culpado quando não rola. Apesar disso, gosto quando ela gosta. Gosto de vê-la feliz. Por isso fico na cama esperando, só para saber. Sozinho, abraço o lençol amarrotado, no qual posso sentir o perfume do sabonete que ela usa. Sim, um cheiro de sabonete, desses que vendem em qualquer farmácia ou supermercado. Às vezes, na rua, o vento me traz o seu cheiro, e então me viro, procuro por ela e acabo me dando conta que é só outra pessoa usando a mesma marca, que somente nela é tão irresistível. É um cheiro muito agradável e, ao mesmo tempo, muito forte, que impregna todos as suas roupas, todos os seus objetos, todo eu. Adoro sentir o cheiro dela em mim, e mais ainda nela mesma. Ouço o som do chuveiro ligado. Jéssica está tomando seu longo banho matinal, que só é mais curto que seu longo banho noturno. Posso imaginá-la toda ensaboada. Uma delícia. Tenho uma ereção matinal, mas vou deixá-la para outra hora. Lembro que os longos banhos de Jéssica não são apenas uma questão de higiene. Ela tem mania de limpeza. O que, no seu caso, como já pude observar, quer dizer muita coisa. Desconfio que Jéssica, no fundo, acredita que o mundo está contra ela. O universo inteiro, desde as maiores explosões solares - a começar pelo próprio Big Bang, que lhe deu a vida somente para depois tirar - às menores formas de vida querem lhe fazer mal: germes, vírus, bactérias, ácaros, fungos, micróbios, pólipos, zoófitos, plânctons, parasitas, planárias, artrópodes, insetos, invertebrados, vertebrados, fósseis, crustáceos, cetáceos, peixes, aves, anfíbios, répteis, dinossauros, caranguejos e mamíferos. Jéssica é durona e se defende como pode, com filtros solares, com inseticidas e antibióticos, com desinfetantes, detergentes e sabonetes. Ela não arreda o pé de sua luta: vencerá e viverá para sempre. A desvantagem de quem acha que vai viver pra sempre é que cada momento da vida é provisório, descartável. A pessoa acha que terá todo o tempo do mundo e acaba não dando valor a cada momento que passa, acaba não se entregando com toda a sua paixão. Talvez por isso, de todos esses seus inimigos, os piores, sem dúvida, sejam as pessoas, em especial os homens, com suas seringas sujas e reutilizadas prontas para injetar nela todos os seus males naturais. É até curioso que estejamos juntos. Sempre vejo a hora em que ela vai imaginar que estou a ameaçando de alguma forma e vai acabar com tudo. Não é o que eu quero. Sou, afinal de contas, seu amigo, apesar de ela não acreditar isso. Ela prefere acreditar que está me usando, assim ela não se sente usada por mim. É ridículo. Lembro que, quando a gente se conheceu, eu disse pra ela: "Ei, é a quarta vez que você ri de um comentário meu, isso está ficando perigoso. É melhor nos beijarmos antes de ficarmos amigos". Claro, isso foi no tempo em que eu ainda era engraçado. Não nos tornamos amigos, apenas amantes. Pelo menos na cabeça dela, porque, na minha, são categorias perfeitamente conciliáveis entre si. Pena que ela seja tão complicada. Apesar dessas neuras todas, prefiro não pensar tanto no lado ruim da relação. Eu gosto de observar as pessoas em geral, em especial Jéssica. Todas as pessoas têm suas imperfeições, e talvez por isso mesmo elas sejam, cada uma a seu modo, perfeitas. Aquele que disse que, de perto, ninguém é normal, ficou ainda no metade do caminho para a verdade sobre as pessoas. Porque, de perto, todo mundo é normal. É isso que faz das pessoas tão especiais. Como no caso de Jéssica. O cheiro dela de sabonete às vezes me faz pensar nas suas neuroses e paranóias, imaginá-la limpando-se de mim, como se o seu contato comigo fosse sujo. Mas, ao mesmo tempo, é um cheirinho do qual eu gosto muito, que me faz vê-la toda gostosa, ensaboada em minha cabeça. E ensaboada ela não deve estar, pois o barulho do chuveiro ligado foi embora há algum tempo. Então, outro cheiro que adoro entra no quarto, uma fração de segundo antes de Jéssica: cheiro de café! Decifro enfim sua mensagem. Amo esta mulher. |
Para ler ouvindo My curse, dos Afghan Whigs. Água fria é para os apressados. Você pula no chuveiro, mal passa o sabonete, dá uns gritinhos e acaba saindo do banho ainda meio suja, meio suada. Já a água morna é acolhedora, deixa você ficar lá o tempo que precisar para se lavar todinha, cada pedacinho da pele. Sem falar que o vapor ajuda a dilatar os poros. Toda manhã brinco com o chuveirinho, sem pressa: Jacó, como sempre, ainda está na cama. Enquanto isso, faço carícias em todo meu corpo. É um belo corpo, não tenho por que negar. Sou gostosa, apesar de não gostar nem um pouco da expressão. Não sou fácil de se experimentar. Não gosto de ser devorada pelos homens com seus olhos de porco. Não é para eles que sou gostosa, como um produto em concorrência com outras mulheres para ser a preferida dos consumidores. Adoro ser gostosa porque é saudável. Quem tem as panturrilhas, as coxas, o quadril, a pele, os cabelos como eu, essa mulher vive bem. Tudo no lugar. E, apesar de eu, vez por outra, desejar alguns mililitros a mais de saúde nos peitos, vivo satisfeita com meu corpo. Jacó também. Tanto é que está lá, na cama, derrubado. Os homens são como animais: só pensam em comer, trepar e dormir. Odeio todos eles. Fico puta principalmente quando me fazem gozar. Não é que eu não goste de orgasmos, muito pelo contrário - e quem poderia desgostar? Mas o que me irrita é que eles consigam afetar meu corpo, minhas sensações, justamente quando estão buscando apenas o seu próprio prazer. É vergonhoso ser assim um objeto. E os filhos da puta, não contentes em dar sua gozadinha, acabam competindo pra ver quem é melhor com as mulheres, ou seja, quem sabe apertar os botõezinhos, tocar os pontos certos, falar as palavras mágicas, usar as chaves que abrem as portas da felicidade carnal, que resultam nesse frio na minha espinha, nesse suor que escorre, nesses espasmos musculares, nos olhos que se fecham, nesses gritos, enfim, no descontrole do MEU corpo. Que ódio que me dá. Muitas vezes quis ser lésbica, mas não tenho o menor talento para a coisa. Acabo precisando, eventualmente, de homens, o que me faz odiá-los mais ainda. Por isso eu os uso, da mesma forma como eles fazem com as mulheres. Eu minto, faço que amo. Depois jogo fora. Por exemplo o Jacó, lá fora: ainda vou precisar dele um pouco. Então não posso fazer muito barulho aqui com o chuveirinho, para ele não desconfiar de nada. Não é a hora ainda de saber que é descartável como qualquer outro. Não é que ele não tenha suas qualidades. É até uma pessoa muito boa. Mas como saber o quanto de suas boas ações não só cenas para me seduzir? Toda aquela atenção, carinho, solicitude, altruísmo, tudo isso não pode ser de graça. Ninguém é bonzinho assim nesse mundo. O problema é que Jacó adora enfiar o nariz onde não é chamado. Leva muito a sério esse seu papel de bom moço e quer sempre saber da vida dos outros, no que ele pode ajudar, o que ele pode lhes fazer. Ou só mesmo para se informar das pessoas. Mas sempre se concentrando no que têm de pior. Desconfio que ele, no fundo, só quer fazer uma grande pesquisa sobre as peculiaridades de todo mundo que conhece. Fica dizendo que se interessa pelas personalidades, mas eu acho mesmo que só quer ver os defeitos dos outros pra se sentir melhor, pra se sentir normal. O que ele não sabe é que procurar os defeitos dos outros é o seu maior defeito. Porque passa o tempo todo julgando. Fica o tempo todo dizendo dos outros que são neuróticos – aliás, essa é a própria neurose dele. É como se estivesse fora desse mundo, achando que é deus, e acaba não fazendo nada pra não cair nos mesmos erros que seus "objetos de estudo" - as pessoas. Categoriza tudo e todos. Quando não tem nada para fazer, categoriza as próprias categorias. A bem da verdade, é um homem de observação, não de ação. Tanto é que, quando nos conhecemos, apesar de ele ter ficado imediatamente interessado em mim, fui eu quem teve que tomar a iniciativa. Ele lançou algum xaveco desses bem furados, que deve ter levado anos pra desenvolver, achando que seria a abordagem ideal. É verdade que naquela festa eu tinha voltado a beber cerveja depois de um longo tempo de abstinência devido a um tratamento com antibióticos, e que depois de só três latas - três latinhas! - eu já estava alegrinha, mas o idiota lançou o xaveco e ficou parado lá, sem fazer nada, enquanto eu estava vergonhosamente entregue. Fiquei parada lá, sorrindo, os olhos brilhando contra minha vontade, e ele não fez nada. Parti para cima antes que morrêssemos de velhos ali. E hoje estamos aqui. A vantagem de você tomar a iniciativa nessas horas é que você sabe quem manda na relação, apesar de os homens sempre acharem que são eles. O próprio Jacó, por exemplo. Ele não manda em nada. E ainda acha que entende muito de mim pelos meus banhos. Se ele soubesse o que acabei de fazer aqui, seu mundinho desabaria. É claro que eu não conversamos sobre o sexo, não vou lhe dar mais esse prazer. Noutro dia, perdi a cabeça com ele e deixei escapar que finjo meus orgasmos. Besteira. Mas consegui convencê-lo de que é para fazê-lo sentir-se bem. E inventei um esquema: quando eu finjo o orgasmo, no dia seguinte eu levo para ele um belo café na cama, só para enganá-lo. É fácil ficar de bom humor: nada que um chuveirinho não resolva. Mas quando ele me faz gozar, isso me irrita tanto que o acordo aos gritos. E, de tão bonzinho que é, somente dá seu sorrisinho amarelo e pede silêncio, como se estivesse com dor de cabeça. Tadinho? Tadinho nada. Assim que eu gosto. Ele nunca vai saber que me fez gozar. Jacó, seu jeca. É ridícula essa sua cara de feliz quando te entrego o café na cama. Está se achando muito bom, não? Pois abro a janela para o vento fresco tirar esse cheiro de homem do quarto. Que horror. |