Suo. Gotas escorrem pelo meu corpo. Há quantas horas estou aqui, neste canto? Neste quarto? Tomando coragem. A escolha está feita. A minha escolha. Uma escolha livre. Sem apoio, sem preces, sem saber o que esperar, tomei a decisão de tirar a vida de Simone.
Uma foto. Uma simples foto. A única coisa no mundo que eu não poderia fazer para que me amasse. Ou melhor, que ela não me deixaria fazer. Poderia desenhá-la mil vezes por dia, tomando banho com as mônadas, pintá-la ao por do sol, torná-la protagonista da quarta parte d’Os Caminhos da Liberdade. Ela teria adorado. Mas nunca tirar uma foto dela. Estão fora de foco, diria. Mal enquadradas, diria. Um lixo, desista, diria. Eu, Jean-Paul Sartre, incapaz de tirar uma foto qualquer, uma foto da mulher que amo.
Uma foto nua. Encontrei-a enquanto bisbilhotava inocentemente seus pertences. Uma foto nua na América. Quem a teria batido? Não pode ter sido Algren. Ele não teria tido colhões. Quem, então, teria essa intimidade com ela? Não digo da intimidade de vê-la nua ou de fazer o amor com ela. Ela é livre. Não sinto ciúme. Se quiser fazer amor, que faça. Tenha os amantes que quiser. Terei as minhas. Aquela foto, entretanto – ninguém deveria ter o direito.
Um americano, talvez? Não faz diferença. Não está aqui para que eu tire sua vida. Ademais, tenho somente uma bala, exatamente o que eu preciso. Um tiro certeiro. Respiro fundo. Em breve, esse corpo a poucos metros de mim não viverá. Será ainda o mesmo corpo, com um pouco de massa a menos, porém sem vida. A mesma matéria: num instante, o cérebro sonha, engendra idéias – algumas bem ruins, por sinal – e, no seguinte, jaz morto. Nada é perene. Sinto a náusea. Deve ter sido causada pelo seu ronco. Pelo menos disso não sentirei falta.
Aproximo-me de seu corpo na cama. Como na foto, Simone está nua. Ainda vive, coberta apenas pelo lençol. É o verão. As janelas estão abertas. Não paro de suar. A arma vacila em minha mão. Sinto que não poderei fazer de perto. Desmaiarei com sangue, as vísceras que espirrarão em mim. Erguido, sozinho, encostado na parede, determinado, aponto a arma. Um silêncio toma conta de mim. Miro. Puxo o gatilho.
* * *
- Albert?
- Jean-Paul.
- Posso entrar?
- Achei que não estivéssemos nos falando. O que deseja?
- Porra, Albert. Posso entrar ou não?
- Seja breve.
- Perdoe-me pela resenha do seu livro. Apesar de ser um lixo, não é nada pessoal.
- É tudo pessoal.
- Ainda gosto de você.
- Diga de uma vez o que deseja.
- Uma arma.
- Uma arma?
- Não me faça repetir. Você tem?
- Tenho, sim. Uma que ganhei de André.
- André? Eu conheço?
- Malraux.
- Cristo. André Malraux? O que você faz com uma arma desse charlatão?
- Eu precisava de uma quando queria me matar. É o que você pretende?
- Não. Jamais.
- Para que então?
- Para matar Simone.
- Matar Simone? Que absurdo.
- Pode ou não me emprestar a arma?
- Por que você quer matar Simone?
- Encontrei uma foto dela.
- Uma... foto?
- Sim. Nua.
- Ah...
- Pois então. E de uma bala, é claro.
- Somente uma?
- Só para fazer o necessário.
- “Necessário”? He.
- Cale-se. Não é hora para piadas.
- Pois bem. Emprestarei.
- Simplesmente assim?
- Sim, ora. Não é o que você quer?
- Não vai tentar me dissuadir?
- Não. Não acredito que você consiga.
- Não duvide de mim.
- Justamente de você eu duvido.
- Por quê?
- Porque você será preso para sempre se o fizer. Qual o interesse do filósofo da liberdade em ficar preso?
- Serei sempre livre. Estou condenado a ser livre.
* * *
[O trecho a seguir é um excerto que constava do manuscrito de Cerimônia de Adeus. Deixou de ser publicado por censura da editora, que temia denegrir a imagem de Jean-Paul Sartre e, com isso, perder lucro nas vendas das obras filosóficas e literárias do autor francês]
No início dos anos 50, estive nos Estados Unidos com Nelson, por uns dois anos. Em Chicago, por ocasião de umas palestras que realizaria, travei conhecimento com um jovem fotógrafo, Art Shay. Um nome pretensioso, sem dúvida, para um rapaz pretensioso, que tencionava ascender em seu círculo social retratando celebridades: artistas, pessoas ilustres, intelectuais. Queria tirar fotos minhas.
Convidou-me, então, a um jantar na casa de um amigo seu, outro fotógrafo de quem já não me lembro mais. Aceitei, naturalmente. O apartamento a que fomos era esplendoroso. Havia algo em sua arquitetura que era realmente encantador – como, por exemplo, uma banheira na suíte. O hábito americano de tomar banhos com frequência não pode deixar de ser admirado: é algo que deveríamos incorporar. Não pude resistir a alguns momentos de contato com a água e, acreditando estar sozinha no quarto, despi-me para o banho.
Ouvi então um ruído bem conhecido atrás de mim – o som de uma câmera fotográfica em operação. Para minha surpresa, ao me virar, vejo Shay com sua máquina, bem satisfeito com sua conquista. Espantei o atrevido para fora do quarto, convencendo-o que sua carreira não estava em risco e que teria oportunidades de tirar fotografias mais publicáveis de mim.
Alguns dias depois, entregou-me uma cópia da revelação. Uma bela foto de mim, de um ângulo do qual não costumo nunca ver-me. Guardei-a com muito carinho e trouxe de volta para a França, quando da minha volta. Porém, tive de cuidar para mantê-la afastada de Jean-Paul, que não poderia nunca saber que outra pessoa havia tirado uma foto íntima minha. Ele insistia muito em fazê-lo ele mesmo, mas não tinha a menor habilidade com fotografia e, por isso, eu o censurava.
Tempos depois, infelizmente, Jean-Paul encontrou a foto, o que deu origem a um pequeno, porém intenso, desentendimento entre nós dois. Desgostoso com a sua descoberta, teve uma crise emocional que o fez voltar a falar com Albert somente para conseguir uma arma. Seu intuito era de tirar a minha vida. Em determinada noite, esperou que eu dormisse – e meu sono é bem profundo – para dar o disparo fatal.
Ocorre que ele errou o tiro, pelo mesmo motivo pelo qual nunca pôde tirar uma fotografia decente do que quer que fosse: Jean-Paul, como se sabe, era birolho. Odiosamente birolho. Não digo estrábico por ser um termo dotado de certa neutralidade científica, nem mesmo vesgo, como as crianças fazem para caçoar de seus amigos ocularmente menos afortunados. Não: no seu caso, era, de fato, birolho. Mirou com o olho errado e a bala saiu pela janela.
Acordei imediatamente com o som do disparo, e a primeira coisa que vi foi aquele pobre homem se desmanchando no assoalho, chorando e se lamentando por não acertar nem um disparo de arma em uma pessoa indefesa. Estava tão ridículo e digno de pena que nem passou pela minha cabeça repreendê-lo por aquela travessura. Não pude odiá-lo, pois entendi imediatamente que aquele grande filósofo do nosso tempo, aquele grande escritor, não era nada como um herói ou um vilão: tinha tido suas idéias e agora era só uma criança, ainda querendo saber o que seria quando crescesse, estendido naquele chão coberto de ilusões desmoronadas.
Deitei ao seu lado e o abracei. Cobrimo-nos com nosso lençol. Fizemos as pazes silenciosamente ao longo da noite. No dia seguinte, fomos informados que o tiro acertara a gaiola de nosso vizinho marujo, tirando a vida de seus mandarins.
Por Thiago F. * 07:57 *
terça-feira, 27 de janeiro de 2009