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Sandra Costa

Para ler ouvindo The Greatest, da Cat Power



De certa forma, era engraçado. Talvez fosse melhor dizer irônico. O caso é que Sandra Costa ganhou um passeio pela cidade sobre um carro de bombeiros, após passar anos andando espremida, anônima, dentro de ônibus e lotações. E tudo o que precisou fazer foi ganhar o ouro pan-americano no salto com vara.

Claro que não é pouca coisa. Foram mais de dez anos de treino. O atletismo não é o esporte mais patrocinado neste país, como se sabe. Sandra precisou dedicar-se quase que exclusivamente ao esporte, sacrificando qualquer outro projeto de vida que pudesse ter. No âmbito social, porém, não teve nenhuma grande perda: além da equipe do clube, praticamente só sua tia Ana sabia de sua existência no mundo.

Agora, no período de uma semana, Sandra deixou de ser uma pessoa invisível para se tornar exatamente o seu oposto. Em cima do carro dos bombeiros, atraía todos os olhares, todos os flashes. As pessoas, talvez pela primeira vez na vida, lhe sorriam. Pareciam estar realmente felizes por ela, pela sua medalha, pela bandeira que os unia.

Justamente isso é que era engraçado - e, ao mesmo tempo, triste. Sandra sofria de solidão. Apesar de ter sido sozinha toda a sua vida, solidão é algo com que não se acostuma. Depois de vinte e três anos sem ninguém, aquele súbito amor público, ao invés de reconfortá-la, só piorava a sua tristeza. Afinal, era um amor que vinha de todos mas não especificamente de ninguém; e era um amor igual ao que todo povo sentia por qualquer atleta em cima de um carro de bombeiros.

Nem por isso Sandra fechou-se ou foi antipática. Sorriu, acenou, mandou beijos, deu autógrafos. Participou de dois programas esportivos como entrevistada e, na mesma noite, jantou com alguns jornalistas. Nunca sua vida tinha sido tão agitada como naquele dia. No seu íntimo, lamentava por saber que aquela atenção que recebia não seria muito longa. Sabia também que alguém poderia tentar algum romance passageiro, aproveitando-se de sua condição de solteira para aparecer na mídia, mas desanimava ao lembrar que naquele amor público era menos amada que o ouro.

Quando finalmente chegou em casa, após driblar algumas vizinhas curiosas que ainda estavam acordada para lhe parabenizar, Sandra desabou. Primeiramente de cansaço. Mas principalmente pelo desalento. Não havia ninguém com quem comemorar seu feito, ninguém para quem ela pudesse ser especial. Nenhuma intimidade. Chorou. Cheetara, sua gata de estimação, vendo sua tristeza, subiu no seu colo para lhe fazer companhia. Sandra chorou mais ainda. Só tinha os ombros de uma gata para se consolar.

De certa forma, eu já sabia de tudo isso. Dava para perceber sua tristeza pela na televisão, quando respondia às perguntas dos entrevistadores. Aqueles olhos sempre distantes. Sendo filho adotivo de sua tia Ana, sou a outra metade das pessoas que conheciam Sandra até o início dos jogos - e a totalidade dos homens. Por isso já estava a par da sua solidão. Não pude conversar muito porque, apesar do adiantado da hora, eu estava trabalhando. Ela acabou me confirmando tudo alguns dias depois, quando tive que ligar para ela. Mas o mais interessante foi o que conversamos sobre o assunto pelo qual telefonei.

- Alô?
- Sandra? Sou eu.

Pensando bem, é melhor pular a introdução e ir direto ao ponto.

- Estou com o resultado do seu exame.
- ...
- Sandra... você sabe o que você fez? Quais as conseqüências?
- É claro que eu sei.
- Então por que você fez?
- Por que eu não faria? Qual a diferença agora?
- Você enganou todo mundo, Sandra. Fez as pessoas gostarem de você.
- E o que tem de mal nisso? As pessoas gostam de mim...
- Sim, mas só até a notícia sair no jornal. "Sandra Costa pega no doping".
- E já terei aproveitado bastante a medalha, não?
- Sim, mas toda admiração que você recebe vai se transformar em decepção, em ódio.
- Você sabe muito bem que é melhor que esse nada que eu vivo, essa sombra.
- Sandra... isso só vai fazer você voltar pra sombra. Você será expulsa do clube, suspensa de competições. Nunca terá uma chance olímpica.
- Mas isso eu nunca tive mesmo.
- Claro que teve.
- Claro que não! Eu só me classifiquei para o Pan em último lugar. Ou você não ficou sabendo? Foi pura sorte! Eu já estava no meu auge. Só quis... viver um pouco. Deixar de sonhar.
- E agora será um pesadelo.
- Eu agüento.
- Espero que sim. Só não acredito que fez tudo isso para passar uns dias com o ouro. Parece um pouco... Midas, sei lá.
- Não é só isso, você sabe muito bem... não é só o ouro.
- O que é então? Me diz. Porque me parece que você não conseguiu mais nada. Deu uns autógrafos, recebeu uns sorrisos. Conheceu o Jô.
- Tudo isso é importante pra mim. Mas eu fiz isso também por você.
- Não fala uma coisa dessas, Sandra...
- Por que não?
- Porque não é verdade, não pode ser!
- Mas é! Você foi o único que... até hoje... sabe, eu penso o tempo todo em você.
- Vamos, Sandra, deixa disso.
- Eu te amo, porra...
- Não ama nada, Sandra, vamos... deixa isso pra lá. E o que isso tem a ver com o doping?
- Você nunca mais quis me ver, você me evita... tem vergonha de mim...
- Sandra...
- Minha única chance de te encontrar seria essa... se você me pegasse no exame. Então... era a minha chance sabe... tomei uma dose extra no dia da final. Antidepressivos.
- Antidepressivos?
- ...
- Quem te receitou isso? Onde você arranjou? Você é uma atleta!
- Você não conseguiria? Qualquer um consegue antidepressivos hoje em dia.
- Mas eu sou médico!
- Sim, um médico que não cuida de mim.
- Sandra, você tem a equipe médica do clube. Eles cuidam de você. Como eles deixaram você tomar...?
- Eles não têm nada a ver com isso. Eu consegui sozinha. Arranjei, não importa. Já tomava faz tempo.
- Como assim, já tomava? Faz quanto tempo?
- Um bom tempo, não sei. Não é fácil viver assim, sozinha.
- Sandra, eu sei que não é fácil... mas você não pode se medicar sozinha. Você precisa de um especialista, alguém para cuidar de você.
- Eu preciso de você.
- Sandra, olha...
- Quando eu soube que você trabalharia com o Comitê no Panamericano... eu não hesitei. Era o que precisava ser feito. Eu preciso de você.
- Mas isso não pode ser... Você sabe disso, eu sei disso também. Vamos em frente. Não fique presa a isso.
- Isso é tudo o que eu tenho.
- Não sei mais o que dizer. Você tem o esporte, cacete.
- Não mais...
- Eu nem sei como chegamos nessa situação.
- Eu só quero ver você... conversar com você. Pessoalmente. Não fuja.
- Não é que eu fujo... só acho melhor assim. Distante.
- Mas agora vai ter que me ver. O Comitê não dá só um telefonema, né? Vocês vão fazer uma reunião comigo. Vão querer a medalha de volta.
- Sim, sim. Você vai receber um comunicado explicando tudo. Todo o procedimento.
- Não fala assim comigo, tão frio...

Mas não pude evitar a frieza durante o resto da conversa. Houve, de fato, uma reunião entre Sandra e o Comitê. Só que eu não participei. Consegui fazer com que outro médico assinasse o laudo. Acabei vendo Sandra apenas pela televisão, pelas fotos dos jornais. Não atendi os telefonemas dela. Como sempre.



Por Thiago F. * 18:55 * sexta-feira, 24 de outubro de 2008