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Carlucho, que vivia nas ruas há muito tempo, tinha tido a grande sorte de encontrar uma máquina de tirar retratos digitais. Não foi bem um encontro milagroso; a máquina não estava iluminada por um feixe de luz celeste à sua espera. Aconteceu simplesmente o seguinte: um casal de bacanas estava discutindo um dia, na rua, e a garota, muito irritada, acabou jogando sua máquina no rapaz, bem na cabeça. O rapaz se machucou e até mesmo sangrou um pouco. Eles imediatamente se reconciliaram, porque um ferimento desses nunca é desejado numa briga de namorados. Carlucho pegou a máquina do chão e bem que tentou entregá-la para a dona, mas ela se assustou com sua aparência de mendigo e tratou de se afastar apressadamente com o ex-ex-namorado. As fotos que estavam na memória da máquina eram bem sem graça: quase todas eram dessas que os casais tiram com os rostos colados e com câmera voltada para si na mão estendida. Numa cidade grande como São Paulo, a probabilidade de Carlucho rever a dona da máquina era muito pequena, e ele acabou apagando todos os retratos, com exceção de um, só para poder se lembrar do rosto da dona. Era uma foto na qual ela estava num lugar bem alto, de onde se podia ver a cidade toda. Carlucho não sabia, mas o lugar era o topo do Edifício Itália, aonde ele nunca poderia ir. Por outro lado, Carlucho sabia muito bem o que era uma máquina de tirar retratos porque por duas vezes já tinha servido de modelo para repórteres. Da primeira vez, até ganhou uma refeição por isso, e o fotógrafo explicou pra ele para que servia a máquina e como ela funcionava, mais ou menos. Carlucho ficou impressionado ao ver a si mesmo no visor do aparelho, e desde então compreendeu por que as pessoas ficavam fazendo poses na frente da Igreja da Sé enquanto seus amigos seguravam aquelas caixinhas de metal perto dos olhos. Era uma caixinha de podia guardar você pra sempre, desde que você tivesse pilhas. Carlucho treinou tantas poses que, em seu segundo ensaio, não conseguiu dar o efeito de pobre-miserável-mendigo-desgraçado que o fotógrafo queria, e acabou não ganhando nenhuma refeição daquela vez. Carlucho tirou retratos de todos os seus amigos da rua. Às vezes, tirava, ou pelo menos tentava tirar, retratos das moças bonitas que passavam. Ele só parou de tentar porque, um dia, fotografando uma academia de ginástica na rua Augusta, alguém não gostou da idéia e deu um tapão na máquina, em direção ao chão. Afinal, é uma indecência que um pobre tire retratos de ricos. Como já era seu segundo tombo, a carcaça da máquina ficou um pouco frouxa, e por pouco ela não se quebrou. Carlucho a consertou com umas borrachinhas de dinheiro que ele usava de enfeite no pulso, mas nunca mais tentou tirar retratos de desconhecidos. Ele também tirava fotos de coisas, lugares. É preciso dizer que, de certa forma, Carlucho tinha um bom olho para as coisas que ficam bonitas num retrato, coisas pelas quais as pessoas costumam passar sem ver. Na verdade, ele já tinha desenvolvido esse gosto pela beleza muito antes. Na época em que estava na moda dar aos mendigos não dinheiro mas papel e lápis, tinha feito alguns desenhos, primeiro copiando os grafites dos muros, e depois tentando desenhar uns prédios, umas pessoas. Aliás, desenhar não foi uma opção para Carlucho quando ganhou o papel e o lápis: ele não sabia escrever. Com relação às fotos, os desenhos eram bem desvantajosos: o lápis já tinha perdido a ponta e o papel se desfeito com as chuvas que tomou por morar na rua. Já os retratos permaneciam. Não que Carlucho entendesse de campo focal, contra-campo, enquadramento americano, obturação, exposição ou diafragma – e sua máquina também era automática demais para que ele pudesse aprender isso na base da tentativa e erro. Ele simplesmente apertava o botão. Quase nunca usava o flash, já que as pilhas usadas que ele conseguia geralmente não tinham carga suficiente para isso. Normalmente tirava fotos à luz do dia, de pedaços de chão quebrados que tinham formato peculiar, do sol por trás de algumas árvores ou refletido em prédios de espelhos, de paredes que adquiriram cores únicas por causa de infiltrações, das sombras dos telefones públicos, dos trilhos do trem em direção ao horizonte. Carlucho entendia, no fundo, o suficiente: bastava certa proximidade e certa perspectiva para ver as velhas coisas de uma forma nova. Outra coisa que Carlucho não sabia sobre a fotografia em geral e, mais particularmente, sobre a fotografia contemporânea, é que uma hora os cartões de memória ficam cheios e é preciso deletar uma parte do seu trabalho, caso você não tenha um disco rígido, o que era bem o seu caso. Até então, só tinha apagado os retratos ruins, aqueles que não precisavam durar para sempre. Entretanto, e infelizmente, isso não chegou a ser um problema para ele, como veremos. Com certa freqüência, Carlucho se reunia com seus amigos da rua na região do Parque Dom Pedro. Acendiam uma fogueira, tomavam uma cachaça, conversavam sobre a vida na rua. Aquelas pessoas, que antes foram seus modelos, hoje compunham todo o público da sua obra. Sempre pediam para ele mostrar no visor da máquina os retratos deles, e se queixavam de ele não conseguir tirar nunca uma foto da fogueira, que era uma coisa linda. Numa dessas noites, Carlucho estava particularmente chateado porque a prefeitura apagou um belo grafite do qual ele tinha tirado um retrato na véspera. Por causa disso, acabou perambulando por caminhos mais longos antes de chegar à reunião. E quando chegou, sabe-se lá por quê, a polícia estava lá na reunião também, espancando os moradores de rua. Não adiantava Carlucho ajudar os amigos a apanhar, isso eles já estavam fazendo muito bem sozinhos. Eles não tinham nenhuma chance contra a polícia. Ele imediatamente soube o que fazer: tirar uma foto da cena. A luz da fogueira não era suficiente para capturar o acontecimento. Configurou o flash e pediu a Deus que ele funcionasse. Para o seu azar, Deus atendeu seu pedido. O flash chamou a atenção dos policiais, que o incluíram no espancamento, aquele ladrãozinho de câmeras. Foi o último retrato que bateu, e também a última vez que a polícia bateu nele: Carlucho não agüentou as pancadas dessa vez. Por acaso, a máquina, que caiu na grama, agüentou o seu terceiro tombo. Um dos policiais a encontrou por ali, como que por um milagre, iluminada pelos feixes vermelhos e azuis da viatura. Os retratos digitais, tivessem sido encontrados por um crítico de arte, teriam sido consideradas amadores; por um estudante de comunicação, geniais. O policial não teve dúvida: apagou-os para sempre, liberando espaço para tirar fotos com sua família. |