Anastácia Fernandova Cortevskaia falava sozinha. Não tinha amigos ou amigas. Havia vestido, clandestinamente, a roupa de
casamento de sua finada mãe, Marina Montezumova Cortevskaia. O vestido ficava guardado junto com os pertences do pai. Era
algo de que o Dr. Cortevski não queria se lembrar nunca mais, mas do qual não conseguia se livrar. Então ela só podia se
fantasiar de noiva na ausência dele.
Como em qualquer história que preste, justamente nessa hora o Dr. Cortevski chegou em casa. Voltava de algum atendimento na
província, que ficava a algumas verstas da isbá em que moravam, bem no meio do nada. O som da chave na porta despertou
Anastácia Fernandova de seus devaneios. Sentia-se isolada do mundo. Dr. Cortevski também, mas era justamente o que ele
desejava.
- Nástia? Nástia, você está aí?
- Sim, papai! Sim! Só um momento.
Anastácia Fernandova escondeu como pôde o vestido embaixo da cama e torceu para que o pai não desse falta dele até a próxima
saída. Sendo o único médico da região, frequentemente era chamado às pressas para resolver o problema de saúde de algum
enfermo da província. Para tranquilidade dos nossos leitores, adianto que Dr. Cortevski não perceberá nunca a travessura de
sua filha, que se repetia diariamente havia quase um ano. Mas me adianto.
- Papai! Alguma notícia de Micha?
- Boa tarde, filha.
- Boa tarde, papai. Perdão.
- Ainda nenhuma notícia.
- Ai, papai!...
- Não se aflija, Nástia, querida. Não há notícias de ninguém. A Europa está em guerra e não há embarcações de
correspondência.
- E se algo acontecer a Micha, papai? Papai!
- Não se preocupe, filha.
Realmente não havia por que se preocupar com relação à saúde do príncipe Micha. Mikhail Borbovitch Gatov se encontrava
peferitamente bem e viveria até os 80 anos de idade na capitania de Goiaj, caçando aborígenes fugitivos, sem nunca pisar na
Europa. Por outro lado, havia algo que Fernandoi Martinóvitch Cortevski vinha escondendo de sua filha: o príncipe Micha
jamais voltaria.
Mikhail Borbovitch Gatov estivera na província de A... inicialmente de passagem a caminho do sul um ano antes. Naquele
momento, uma forte chuva de granizo dificultava a viagem por terra, e o rio F... transbordou. O príncipe Micha, que era um
brincalhão, mergulhou para nadar naquilo que parecia uma enorme Coca-Cola com gelo e limão e teve uma pneumonia. Acabou por
passar algumas semanas convalescendo sob os cuidados do Dr. Cortevski. O príncipe e a jovem Nástia, então com incipientes 16
anos, se apaixonaram.
Quando teve alta, Mikhail pediu a mão de Anastácia Fernandova reservadamente a seu pai. Fernandoi Martinovitch ficou muito
lisonjedo com o apreço que o príncipe sentia por sua filha. Todavia, sabia não ter dote suficiente para a realização do
casamento. Não queria passar vergonha, e por isso respondeu ao príncipe que sua filha já tinha se comprometido com outro
rapaz muito digno da província. Mikhail compreendeu e partiu sem dizer adeus a Anastácia Fernandova, pois não gostava de
cenas tristes. Dr. Cortevski informou à filha que o príncipe precisou ir embora com urgência, por ter sido convocado para uma
guerra na Europa. Forjou até uma carta de despedida com promessa de retorno, que Nástia guardou pelo resto da vida.
O fato de o Dr. Cortevski não ter dote para casar sua filha pode ser explicado de maneira muito simples: Fernandoi
Martinovitch não era doutor porra nenhuma. Após ter dominado a cidade de Montezuma em missão pela Mãe-Rússia, com ajuda da
trilíngue Dona Marina, sua mulher e mãe de Anastácia Fernandova, foi abandonado pela amante, escorraçado pela sua própria
nação e destituído do poder que havia conquistado com suas técncas de guerra. Partiu com a filha recém nascida em direção ao
território francês, em busca da cidade perdida Ledoré, atraído pela promessa de ouro em abundância. Já havia conquistado os
astecas, por que não os incas?
Durante a guerra da conquista, havia aprendido com algumas tribos locais de vira-casacas como praticar o curandeirismo, e era
com esse conhecimento que se intitulava doutor nas regiões mais próximas da linha do Equador, onde se encontra a pacata
província de A.... Infelizmente, Fernandoi Martinovitch, ou Dr. Cortevski, como veio a ser conhecido, entendia mais de fazer
morrer que de fazer viver, e por isso nunca conseguiu acumular um grande patrimônio, já que quase nenhum de seus pacientes
sobrevivia para lhe pagar a conta. O príncipe Micha havia sido uma rara exceção.
Sem ter notícias de seu amado, Nástia ficou muito triste, e a noite foi bem silenciosa entre os dois. Ao menos enquanto
estavam acordados. Normalmente, Fernandoi Martinovitch tinha o sono bem leve, como convém a um soldado, sempre atento aos
sons que o cercavam. Estava acostumado a dormir com os roncos de Anastácia Fernandova, que soavam como o juízo final quando
ela dormia de boca aberta. Mas esta noite guardava ainda algumas supresas. Por volta da meia-noite, Fernandoi Martinovitch se
deu conta que a filha não roncava. Nem por isso fazia silêncio. "Será que deu para falar sozinha também quando dorme?",
pensou. Foi verificar.
- Olhe, mamãe! É papai! Venha, pai! Mamãe está aqui!
Não era possível. Dona Marina não estava de fato morta, ao contrário do que pensava a filha. Todavia, ela não poderia estar
ali naquele momento. Reinava Nova Moscou, a antiga Montezuma, ao lado de Anton Mendozvski. Fernandoi Martinovitch não
compreendia.
- Papai! Que felicidade! É o espírito de mamãe, ela veio me trazer notícias boas! Micha está rico e já está na América!
Recuperando-se do choque inicial, que somente foi possível por conta da vodca que tomava para dormir tranquilo, Fernandoi
Martinovitch caiu em si e voltou para seu quarto. Sabia o que fazer. Retirou de baixo de seu travesseiro de penas de ema sua
pistola laser e voltou ao quarto da filha, disparando em direção da aparição.
- Malinche! Morra!
- Não adiantará nada, Fernandoi Martínitch. Ainda está bêbado?
Um detalhe: no mundo em que essa história se passa, a América foi dividida entre a França e a Rússia. Houve algo parecido com
o Tratado de Tordesilhas, só que mais sofisticado. Aqui, nenhum país foi enganado por portugueses com uma linha imaginária
que, obviamente, nunca seria respeitada. Não. França e Rússia eram muito mais inteligentes. Dividiram a América bem na linha
do Equador, que é uma linha natural, como se sabe. Em caso de dúvidas, a linha do Equador passa por Quito.
Sendo assim, a França ficou com a porção do hemisfério sul e a Rússia, com a do norte. Havia algumas disputas com relação à
localização de Ledoré, muitos bandidos e imigrantes ilegais de todas as partes do mundo, mas, em geral, russos e franceses
respeitavam seus limites fronteiriços. Quando os russos chegaram para conquistar Montezuma, descobriram que a primeira coisa
que os astecas haviam inventado foi o holograma. A segunda coisa foi a Coca-Cola com gelo e limão, sendo que a folha de coca
era roubada dos incas. Os incas, em retorno, roubaram o holograma e levaram para o hemisfério sul, até o Paraguai, que nunca
foi destruído pela Inglaterra (que não existe nesse mundo - somente as Malvinas) e, portanto, era um grande polo tecnológico.
No Paraguai, nasceu a indústria bélica do laser e dali vinha a pistola de Fernandoi Martinovitch.
- Morra, Malinche! Morra!
- Férnia, pare com isso! Agora! Machucará nossa filha!
- É minha filha! Só minha!
Então Fernandoi Martinovitch Cortevski chorou como um menino. Anastácia Fernandova não entendeu picas do que estava
acontecendo - por que seu pai tentaria matar sua mãe, ainda mais se ela já estava morta?
- Papai! O que é isso? O que é isso, pai?
- Nástia.. minha querida Nástia...
- Papai, o que está acontecendo?
Fernandoi Martinovitch não tinha palavras. Apenas chorava e balbuciava "Malinche, Malinche". Muitas mentiras vinham à tona em
um só momento. Como poderia explicar à filha?
- Querida Nástia - interveio a mãe -, filhinha. É preciso que você saiba. Não estou morta.
- Mamãe? O que você diz?
- Isso mesmo, filha. Isto que você vê não é uma aparição. É uma transmissão holográfica.
- Cadê o transmissor? - esbravejou Fernandoi.
- Querido... nã há transmissor. A tecnologia mudou muito desde que você nos deixou.
- Eu os deixei? Eu? Você me traiu com aquele cão, Anton Mendozvski! Cadela!
- Eu fiz o que era melhor pela Nova Rússia.
- Pela Nova Rússia? VOCÊ É UMA ASTECA! UMA CADELA TRAIDORA ASTECA! MALINCHE!
- Sim, a Nova Rússia precisava de mim. Eu falo francês, afinal.
- E eu? E Nástia? Por que nos trair?
- Estou de volta.
- Um holograma! Um puto de um holograma!
- Sim. Mas eu vou guiá-los a Ledoré.
Agora Dona Marina estava falando a língua dele.
- Papai, o que é Ledoré? Mamãe? Do que estão falando?
- Nástia, querida. É lá onde o prícipe Micha está.
- Micha! Vamos, papai, vamos! A família toda!
- Marina... não tenho como ir sozinho com Nástia.
- A Nova Rússia fará o que for preciso para conquistar Ledoré.
- Sim. Precisarei de alguns mujiques na empreitada.
- Querido...
- É Dr. Cortevski.
- Férnia...
- Ou Fernandoi Martinovitch.
- Que seja. Não há muitos mujiques na América Central, você sabe. Somente uns índios preguiçosos.
- Eles não servirão.
- Comece sua jornada. O reforço chegará. Confie em mim.
- Buscarei Ledoré, mas jamais confiarei em você.
Arrumaram as coisas e partiram imediatamente. Deixaram a isbá e os poucos pertences para trás, incluindo o vestido de Dona
Marina embaixo da cama. Após algumas semanas, guiados pelo holograma, chegaram a Ledoré. Nenhum sinal do ouro ou de Mikhail
Borbovitch. A cidade existia, mas era uma cidade fantasma, à primeira vista. Fernandoi estava perplexo. Onde estaria a
riqueza pela qual tanto lutou? Anastácia Fernandova enchia-lhe o saco, perguntando pelo seu amado.
Depois de dois dias procurando por ouro em todos os cantos da cidade perdida, finalmente avistaram companhia. Porém, estava
longe de ser um bom sinal. Quem poderia ter imaginado que Ledoré havia se tornado um quilombo de aborígenes que eram trazidos
da Austrália para trabalho escravo na América do Sul? Os refugiados cercaram pai e filha e os capturaram. Colocaram-nos no
tradicional caldeirão para ferver homens brancos. Tinham adquirido o hábito do canibalismo por influência das tribos
nativo-americanas e haviam adorado.
Foi uma morte dolorosa. Não só para os dois, como também para o príncipe Mikhail, que chegava com sua expedição a Ledoré
justamente no momento em que Anastácia Fernandova era servida entre os aborígenes. Toda a alegria de sua vida acabou naquele
momento. Vingou-se, não só daqueles aborígenes que haviam tomado Ledoré, mas de todos os que cruzaram seu caminho depois
daquele dia. Nunca viu o lendário ouro de Ledoré, tendo vivido apenas da matança, e jamais pôde amar outra mulher. Tornou-se
o maior exterminador de escravos refugiados que este mundo já conheceu, e hoje temos muitas ruas com seu nome em quase todas
as nossas cidades, além da famosa estátua de autoria de Jules Guerre, na Avenue de Saint Amaro.
FIM
Por Thiago F. * 19:18 *
sábado, 20 de junho de 2009