Para ler ouvindo Easy, na versão do Faith No More.
Ser é ser percebido
Berkeley
- Às vezes, me sinto como se estivesse naquela piada do Mario.
- Sente-se atrás do armário? Dentro dele, querendo sair?
- Não essa piada. Aquela assim: Por que o Mario foi ao psicólogo?
- Por quê?
- Porque estava passando por uma fase difícil.
- Você está passando por uma fase difícil?
- É como eu estava falando. São várias fases que não consigo terminar.
- Você pode dar um exemplo?
- Todos os exemplos: Golden Axe, Final Fight, Sonic 3, todos os jogos, todos. Não passo nunca da segunda fase.
- Sempre a segunda fase?
- Não necessariamente. Às vezes vou um pouco mais longe, às vezes qualquer chefe me detona.
- E sempre é um chefe? Uma autoridade?
- Não, às vezes as tartarugas, os bandidos aleatórios em geral. Outras eu caio no abismo ou na água.
- Entendo. E você já experimentou colocar no Easy?
- A questão não é essa. Eu era muito bom. O melhor do mundo, talvez. Mesmo no Hard.
- E quando foi que começou essa fase difícil?
- Não sei, há alguns anos já. Eu me lembro que eu perdi para o Balrog. Eu nunca tinha perdido para o Balrog.
- O americano ou o japonês?
- O americano, o lutador de boxe.
- Sim. E você teve que passar o controle para algum amigo seu que estava de próximo?
- Não...
- Se sentiu descontrolado?
- Não, eu estava jogando sozinho, tive que dar Continue.
- E você não queria continuar?
- Bom, eu queria jogar de uma só vez, do começo ao fim.
- Então você tem medo de morrer?
- Olha, na verdade não me incomoda muito, não, se eu tiver vidas extras ou poções mágicas. Só não quero perder.
- Por isso você joga sozinho? Tem medo que seus amigos sejam melhores que você? Que eles te matem?
- Não é isso. Eles jogam outras coisas.
- Você pode dar um exemplo?
- Eles gostam de jogos em primeira pessoa.
- E você não?
- Não.
- Por quê?
- Não sei, é muito realista pra mim. Qual a diferença entre o que eu vejo num jogo em primeira pessoa e a minha vida, que eu já vivo em primeira pessoa?
- Ora, os tiros, o cenário, a possibilidade de matar os outros. Há uma grande diferença, não?
- Sim, nesse sentido é pouco realista.
- Podemos dizer então que há um sentimento de ambivalência com relação aos jogos em primeira pessoa?
- Não sei. Me incomoda não saber quem eu sou. Eu gosto de me ver, saber o que eu faço, que nem quando eu sou o Mario: corro, pulo, balanço o rabo e voo.
- E você sente que em primeira pessoa não sabe quem é?
- Sim.
- Sabe dizer por quê?
- Porque eu não me vejo.
Ele sente falta do próprio rosto. Para onde quer que olhe, vê coisas, vê pessoas, pessoas com seus rostos, rostos com olhos. Vê tudo, menos o seu rosto. E começa a achar que nem mesmo tem um. Principalmente dos olhos sente falta.
- Você só experimenta isso jogando videogame?
- Não sei, eu...
- Você já tentou se olhar no espelho?
- Não adianta. Já me disseram isso antes, e é claro que eu já tinha tentado sozinho.
- Não adianta como?
- Porque no espelho é justamente isso o que eu vejo: que sou alguém que olha. Eu não quero ser um olhar. Não gosto de me ver vendo. Preferiria me ver sendo. Ver meu rosto como vejo o dos outros. Quero me ver como os outros me veem.
- Quer ser visto?
- Isso. Passo o tempo todo me sentindo voyeur. Por isso odeio espelhos: só vejo o eu-voyeur.
- E se você se filmar?
- Também já tentei e não adiantou nada.
- Por que não?
- Primeiro que eu não consigo agir espontaneamente na frente da câmera. Além disso, é sempre uma imagem de um passado recente. Nunca é quem eu sou no exato momento.
- Mas você também é muito chato, hein?
- Escuta, eu não te pago pra você ficar achando que eu sou chato.
Como dizer a ele que chato é como eu o vejo? Será que ele aceitaria esse estar-no-mundo - o ser-chato de um ser chato?
- Perdão. Alguma vez você tentou se ver através dos olhos dos outros? Escutar de alguém o que essa pessoa tem a dizer sobre como ela te vê?
- É muito difícil pra mim. E o que eu quero não é escutar, é ver. Me ver.
De certa forma, ele é como um Truman invertido: em vez de ser o objeto sobre o qual todos os olhos repousam, é o único olhar que há no mundo pra ver todas as coisas. As coisas existem porque ele as olha. E ele quer ser uma coisa no mundo; quer dar um passo para trás na sua consicência e ver a si mesmo também no mundo. É claro que isso lhe traria o mesmo problema em outro grau, mas ele faz de conta que não percebe. Ou então simplesmente espera alcançar esse outro estágio para, então, começar a se preocupar com o problema.
- Podemos dizer que eles têm outras brincadeiras que te deixam de fora?
- Não disse que eles me deixam de fora.
- É como você se sente, não? De fora do mundo. Um olhar como o de Deus.
- Não acredito em Deus.
- Só que age como se fosse. Um espectador passivo. Só observa, só age através de personagens de videogame. Imaterial.
- Não. Não.
- Você quer ser alguém, quer ser visto?
- Sim, mas...
- Eu diria que você está aqui para recuperar sua humanidade. Quer deixar de ser o Deus onisciente preso aí dentro pra ser alguém, para ser uma pessoa. Um personagem, talvez. Quer recuperar sua máscara.
- ...
- Não é isso o que você quer? Ser o Mario, o Luigi, o Rayden...
- O Raiden, não. O Solid, sim.
- Eu disse o Rayden.
As brigas lá em casa têm me tirado o sossego. Já chego aqui num humor péssimo e ele vem me confundir o Rayden com o Raiden. Maldita geração Playstation. Acabo, infelizmente, decidindo intervir de uma forma muito drástica pra ver se resolvo o problema dele: olhar bem no fundo de seus olhos. Se esse filho da puta quer ser uma coisa vista, vou olhar pra ele até ele se sentir olhado e saber qual é a sensação.
- Vê se você se vê nos meus olhos.
Fico surpreso. Seu olhar é monstruoso. Não há como devolvê-lo, como encará-lo de volta. O fundo dos seus olhos pretos é tão fundo e tão vazio que realmente cabe um mundo inteiro ali - um mundo bem solitário, aliás. Sentindo-me existente apenas no olhar dele, perco toda a confiança na minha própria subjetividade. Torno-me objeto para ele e finalmente compreendo toda sua angústia: seu vazio de si mesmo era invencível.
Choro, é claro. Qualquer um choraria. Ele, comovido, chora também. Beija as lágrimas: são o que de mais concreto ele poderia saber de seus olhos. Um silêncio assustador. É preciso interromper a sessão. Não posso deixar que perceba que não sei o que fazer. Porém, ele recupera o ânimo em primeiro lugar.
- Acho que... acho que alguma coisa aconteceu aqui.
- Que coisa?
- Não sei bem. Eu acho... acho que... aos poucos... sinto que passarei desta fase.
- Passar dessa fase?
- Sim. Sinto que posso ir adiante, algo como uma confiança recuperada.
- Não.
- Não o quê?
- Não passará desta fase, infelizmente.
- Por quê?
- Porque seu tempo acabou.
Por Thiago F. * 18:47 *
quarta-feira, 3 de junho de 2009