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- No começo dos anos 90, estávamos por cima. Nós, os feios, os sujos, os cabeludos, os mal vestidos: os rebeldes. O rock era nosso; a música era nossa. Contra toda a efemeridade dos anos anteriores, todo aquele ridículo, tínhamos trazido à tona o que havia de importante na vida: cantávamos a verdade, protestávamos por ela. A música refletia o que havia de mais essencial no mundo, um mundo novo, aliás, inaugurado pela queda do muro de Berlim. Derrubamo-lo a golpes de guitarra e abrimos o caminho para um novo futuro, universal e sem fronteiras: um mundo definitivo. E, no começo dos anos 90, estávamos também por baixo. Nós, os feios, os sujos, os cabeludos, os mal vestidos – e também os mal amados. Os não-amados. O rock e a música eram nossos, mas não tínhamos ninguém. Aprendêramos a amar o rock e amávamos o rock. Aprendêramos o que era o amor através do rock. Tudo o que sabíamos sobre o amor vinha do rock, pois era todo o amor que tínhamos. Até que, no início do século XXI, foi a vez das torres gêmeas caírem e tudo mudar. Porque o mundo ficou muito urgente. Numa época em que a qualquer momento uma bomba, uma carta, um carro, um avião pode nos matar de uma hora para a outra, não há mais tempo para o grande amor. Todo o novo rock se pôs a ser fugaz, nada era feito para durar. E assim também o amor. Tanto é que as músicas apareciam e sumiam assim como parceiros sexuais. Duravam uma noite. Uma música que só existia enquanto tocava na pista de dança correspondia a um simples beijo. Não se amava as músicas: ficava-se com elas. Nenhuma ligação no dia seguinte. A nossa música sempre foi maior, sempre falava das coisas boas, duradouras. Agora, essa nova música desaparecia, não dava a mínima para a gente, nem a gente para ela. Um espírito de indiferença e desapego. Os ídolos do rock pipocavam, e o pior é que agora eram todos asseadinhos, coloridinhos, arrumadinhos, educadinhos, fofinhos: uns almofadinhas. Nem mesmo os acordes duravam. Na nossa época, os acordes duravam. Havia reverb. Mas a nova música era em staccato: o fim imediato de cada acorde. Para dançar, nenhum grande passo ou movimento, pois não havia tempo a perder: era preciso ficar igual a um robozinho, sem se mexer demais, só os ombros ou os quadris, nunca ambos, os pés plantados num quadrado da pista quadriculada em preto e branco, o último resquício dos velhos tempos. Velhos tempos: o nosso tempo. Quando demos conta que uma nova geração, diferente da nossa, era a nova geração, então é porque já fazíamos parte da velha. Mas era do nosso feitio resistir: que juventude era aquela que surgia diante de nossos olhos, contrariando tudo o que sempre fomos? Que direito eles tinham? A juventude era nossa, nunca abriríamos mão dela. Nossa juventude é o que a juventude deveria ter sido para sempre: a verdadeira, essencial, eterna juventude. Não estavam previsto esses novos novos, e contra eles nos tornamos conservadores. Nossa luta pelo rock era também por nosso ideal de amor, o romântico, o verdadeiro, o sublime, que a nova música quis tirar de cena, sugerindo novas relações. É bem verdade que, já ao final dos anos 2000, os adolescentes, totalmente carentes de amor e música, tentaram resgatar todo o sentimento perdido de uma década e se entregaram de cabeça a músicas que gritavam algum tipo de amor, um amor a qualquer custo. Mas veja bem: faltava-lhes referência e habilidade. Queriam o amor pelo amor porque tudo o que dele conheciam era a sua ausência. Não alcançaram aquele amor verdadeiro, essencial, do qual somente a minha geração até então conhecera e do qual não desistiria. Frustradas, essas crianças tentaram ainda desesperadamente chamar atenção para si pintando seus cabelos com todas as cores artificiais, cortando-os de maneiras esdrúxulas, perfurando-se, vestindo-se mal (mas muito pior do que nós havíamos feito quase vinte anos antes): em suma, mutilaram-se, flagelaram-se em troco de algo que não conheciam e que nunca lhes veio. E ninguém deu a mínima para eles: como disse, reinava um espírito de indiferença. É a partir desse pano de fundo histórico que se deve compreender o que aconteceu com a música a partir de meados da década de 2010. É que, de repente, toda música tornou-se multi-dimensional. Ela criava, ao redor de si, ao redor do ouvinte, um ambiente, um cenário - colorido, cheiroso, saboroso, texturizado - que era mais rico e complexo conforme a qualidade da música. A dificuldade toda era compreender a qualidade da música. Ninguém sabia dizer exatamente o que era bom. Na verdade, todos achavam que sabiam, mas não havia um consenso; cada um dizia, da música de que gostava, que era boa, e da que não gostava, que era ruim, como acontece ainda hoje. Quando a música era tida como ruim, ela não se manifestava, ou não muito. Enquanto as donas-de-casa de classe média eram as mais sorridentes (pois suas vidas haviam ganhado brilho), seus filhos metaleiros faziam mais cara-de-mau do que nunca. Não podiam admitir, naquela hora tão importante, que suas músicas não se manifestavam; que eram, de fato, ruins. Afirmavam enxergar demônios, caveiras e sombras, qualquer coisa semelhante a uma capa macabra de disco, e que por isso não riam. Mentiam, mas ninguém percebia e nem queria perceber. Muito tempo depois, confirmaram a suspeita geral de que, de fato, nunca tinham gostado muito daquelas músicas. Entretanto, não eram os únicos que estavam tendo contratempos com a novidade. A minha geração de românticos envelhecidos simplesmente não conseguia fazer aparecer todo aquele amor compreendido dentro de nossas músicas. Ele simplesmente não aparecia. A frustração reinava entre nós. Nossa música, a mais verdadeira de todas, a melhor - não se manifestaria ela para nós? Alguns de nós tentaram acreditar, no fundo mentindo para si mesmos, que nossa música prescindia de manifestações multi-dimensionais, por ser boa em si mesma, que ela independia de avaliações subjetivas. Outros arriscaram ainda dizer que ela não se sujeitaria aos ditames mercadológicos da nova década. O momento crítico dessa nova ordem mundial, como hoje se refere àqueles tempos, veio na esteira desse pensamento. Nós, que do amor só conhecêramos o que cantavam as músicas, acabamos tendo muito tempo livre, na juventude, para estudar e enriquecer. Naquele momento, já havíamo-nos tornado poderosos membros da indústria cultural e vimos a possibilidade, num lampejo supostamente genial, de fazer aparecer nossa música essencial e objetivamente boa. Na verdade, um surto eclético: a idéia de criar a música universal, a música que seria a manifestação última de toda a humanidade – a nossa música. Nossa proposta era juntar todos os seres humanos para fazer com que a música de cada um tocasse em uníssono com todas as outras e, assim, conjurar a suposta música universal. Todos estariam de mãos dadas. Todos penetrariam nas manifestações vizinhas, o que não seria agradável para muitos. Os mais radicais - entre eles, todos os metaleiros - negaram-se a promiscuir-se e mantiveram-se mais ou menos agrupados no grande círculo (pois essa era a disposição proposta, talvez para lembrar um disco). Isso se deu no mar, porque era o ambiente mais propício para a interação entre manifestações e também porque permitia maior liberdade de movimentação das pessoas nos cenários. Creio que foi no Atlântico, me lembro que a movimentação deu-se em alguma costa leste, e não parecia ser a Ásia. Seja como for, muitos morreram de forma curiosa no processo, afundando de uma hora para a outra como se tivessem seus corpos feitos de chumbo – como se nunca tivessem ouvido uma só música boa na vida. O resultado de toda aquela balbúrdia não foi menos interessante. Uma vez que todos estavam posicionados, o mar começou a tremer, a princípio no fundo. Os tremores subiram, até a superfície, formando ondas fortes, mas que não fizeram as mãos se desatarem. Do centro desse círculo humano emergiu um imenso templo - talvez dessa forma deva ser referido - de pedra. Da posição de onde eu estava, pude ver que a metade traseira daquela coisa era formada por um monte de rochedos, muito alto, e a outra metade era como um pátio, sendo que a estrutura como um todo deveria parecer um altar quando vista pela frente. E tudo era cercado por tochas, que saíram acesas mesmo do mar. Ao meu redor, a comoção era geral. Mas toda euforia passou, dando espaço à maior decepção, conforme as pessoas começaram, cada vez em maior número, a contemplar a obra de frente: para representar a música universal, esculpidos nas mesmas pedras que o resto do templo, com quinze metros de altura, mais ou menos, estavam, na sua formação original, cada um deles apontando para um ponto cardeal, com suas fantasias e pinturas marcadas em relevo, os membros do KISS. Pois é... é um universo horrível mesmo. - Puxa, tio - mas nem foi isso que eu perguntei... |