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No meio da insônia, enquanto tentava em vão sair do seu bloqueio criativo, o escritor medíocre foi visitado por Jesus Cristo em carne e osso. Não se assustou com aquela súbita presença, iluminada apenas pela luz do seu monitor, que estava totalmente branco: um arquivo novo do bloco de notas, sem texto algum, com a tela maximizada havia algumas horas. - Você aqui, em carne e osso? - Sim. Realista, não? - Eu sempre imaginei que vocês, imagens religiosas, aparecessem como um holograma, um troço de luz. Que nem um jedi morto do Guerra nas Estrelas. - Não, assim não. - Quero um Jesus que apareceça como um jedi morto, ou como um jedi vivo transmitido por um robô - disse o escritor medíocre olhando para cima. - Com quem você está falando? - Com seu pai - resmungou. Olhou de volta para Jesus. - Com você. - Mas você nem acredita em mim. - Não mesmo. E você ainda vem me falar em realismo. - E agora você quer que a vida seja como nos filmes? Jedis, robôs? Pensei que quisesse ser um autor realista. - Mas que porra é essa, uma epifania agora? Justamente Jesus Cristo vem me fazer ter uma epifania? - Eu tenho esse hábito. - Era só o que me faltava. Diga que você veio me buscar, que a morte está de férias. - Mas se você não acredita em mim, como eu poderia ter vindo te buscar? Além do mais, a morte não tira férias. - Então o que você quer de mim? - Vim te ajudar a sair do bloqueio. A escrever. - E por que caralhos você se acha apto para isso? Nunca escreveu nada na vida. Aliás, a sua própria vida é uma história muito mal contada. Chata e mal escrita. E mentirosa. Eu quero realismo, quero escrever sobre a vida. A vida de verdade. O que é que você tem a ver com isso? Você nem existe. - Ora, estou aqui em carne e osso. Não sou uma projeção de luz nem um jedi. Nem auréola eu tenho. O escritor medíocre já havia percebido isso. - Mas acho que vou tentar te dissuadir dessa obsessão por realismo, continuou Jesus. - É de se imaginar, considerando que você mesmo é irreal. - Deixa de ser chato. O negócio é o seguinte: a realidade toda fui eu que criei. Vai querer competir comigo? - Arrogante, você. Por que acha... - dizia o escritor quando Jesus o interrompeu. - O que eu quis dizer é que a realidade é chata. Você mesmo disse: eu nunca escrevi nada e minha história é mal contada. Por que seguir o meu exemplo? - Nisso você tem razão. - Além do mais, a realidade está toda aí. Ninguém precisa de literatura nenhuma pra ter contato com ela. - Ninguém precisa de textos escapistas. Ou de mais ilusões. Ou de ideologias religiosas, por exemplo. Some daqui, vai. - Mas que grosseria. - Não estou a fim de amar ao próximo, e já que você é o único que está por aqui, vou começar seriamente a te odiar. - Deixa disso. Vai me odiar assim de uma hora para a outra? - perguntou Jesus, levantando-se impacientemente da cama em que havia sentado. - É sempre assim com você: tudo começa de uma hora para a outra. Com um "de repente". Só assim você consegue escrever uma história. É isso que você chama de realismo? - Alguma coisa tem que acontecer - respondeu o escritor, surpreso por Jesus conhecer sua obra. - E por acaso na realidade as coisas só acontecem de repente? Que realidade é essa? No mundo que eu criei as coisas acontecem devagar, aos poucos. - Não tenho tempo para coisas que acontecem aos poucos. - Por isso você nunca vai escrever um romance. - Eu escrevo um romance quando eu quiser! - esbravejou o escritor medíocre. - Eu conheço seu fu-tu-ro - replicou Jesus sarcasticamente, rindo em seguida. - Isso não existe! - É verdade, mas eu não quis perder a piada. - Idiota. - O que eu quero dizer - continuou Jesus, sentando na cama após recuperar o bom humor - é que os acontecimentos reais são processos, muitas vezes lentos, e sempre contextualizados. E não é isso o que você faz. - Tudo bem. Só que eu preciso de um gatilho, de algo extraordinário pra começar a história de maneira surpreendente. "Faça-se a luz": nisso somos iguais. De resto, tudo segue o real, não existe magia, milagre, as pessoas têm seus defeitos, a física tem suas leis, eu respeito tudo isso. - Tenho minhas dúvidas. Pessoas nunca aparecem do nada na realidade, como nas suas histórias. Nem costumam usar frases de efeito, como "a morte não tira férias", por exemplo. Diálogos tarantinescos, então, só nos filmes. - Duvido que tarantinesco seja um termo existente. - Não deve ser mesmo. Se só ele faz diálogos daqueles, não pode existir o gênero. - A-ha! - gabou-se o escritor de sua vitória parcial. - Mas eu ainda não havia acabado. As pessoas reais não só não têm esses tipos de diálogo como elas não têm muito o que falar, nada de interessante. E elas gaguejam em conversas complicadas. - Meus personagens não têm esse tipo de defeito. - Eu sei. Eu sei o que você vem fazendo: manda uns dois ou três defeitos lá nos personagens só para fazê-los parecer reais, como se a realidade fosse definida pelos defeitos. Isso é truque de mal mentiroso, por sinal. Além disso, eu percebi que você tem medo de narrar em primeira pessoa, o que seria muito mais sincero pra quem quer ser realista, sabe? Passar emoções sentidas. Não é vergonha nenhuma escrever um "eu", usar um personagem narrador ou um narrador personagem. Mas você prefere fazer pior: escreve continhos em terceira pessoa, com um único personagem e seus defeitinhos. O escritor medíocre ficou profundamente atordoado, sem saber o que dizer. Após alguns segundos de um pesado silêncio, Jesus Cristo, sentindo-se vitorioso em sua argumentação, começou a bolar um cigarro de maconha. O escritor ficou mais ainda sem palavras, se é que isso é possível. Jesus acendeu o baseado, tragou e disse: - Bem que eu queria escrever os dez mandamentos da literatura, sabe? Mas ando meio ocupado. Um monte de escritorezinhos de merda como você precisando de epifanias, desviando minha atenção. - Você fuma maconha?! - perguntou surpreso o escritor, ignorando o comentário de Jesus. - Não acredito. Jesus Cristo fuma maconha! - Na verdade, eu não sou Jesus Cristo - disse soltando lentamente a fumaça. - Sou Jah. - O que é isso, uma revelação no final? Que coisa mais cliché! - Não venha com essa - respondeu Jah soltando outra baforada. - Foi você quem presumiu que eu era Jesus. Olha lá em cima: "Blá, blá, blá, o escritor medíocre foi visitado por Jesus Cristo em carne e osso". A revelação é sua, irmão. E quem disse que estamos no final? A vida real não tem fim, ela prossegue, cheia de pontas soltas. Principalmente pra mim, que sou eterno. E por falar em pontas... - concluiu, oferecendo o baseado ao escritor medíocre. |