Para ler ouvindo Haligh, haligh, a lie, do Bright Eyes
Quando certa manhã F. despertou, depois de um sono intranquilo, achou-se em sua cama transformado em Ewan McGregor. Levou alguns intantes para compreender: primeiramente, teve a impressão de que sua pele estava mais clara, caucasiana. Não tinha tomado sol ultimamente, mas seria normal estar tão branco? Examinou, ainda sonolento, o corpo, com dedos levemente mais gordos e de unhas menores. Aquele não era ele. Sentiu-se, também, mais forte, e pensou que a musculação estava finalmente dando resultados.
Porém, foi somente quando viu no espelho o jovem Obi-Wan Kenobi vestindo seu pijama que F. se deu conta que se passava. Ewan McGregor?, pensou. Nesse momento de atordoamento, sua mãe bateu na porta do quarto, que ele sempre deixava trancada, para avisá-lo que estava atrasado para o trabalho e que o café estava na mesa. F. respondeu que já sairia.
- O quê? - perguntou de volta a mãe.
F. tornou a repetir que já iria. Porém, ficou ainda alguns instantes olhando-se no espelho. Estava perplexo. Viu pelo relógio do criado-mudo que mais dez minutos tinham passado. Novamente, a mãe veio apressá-lo. Ele abriu a porta e gritou na cara dela:
- Wait a fucking minute, will ya?
Os dois se assustaram. A mãe de F. correu, gritando socorro, e F. fechou-se novamente no seu quarto, assustado por ter falado em inglês. What the fuck? Percebeu então que também pensava em inglês, e ainda por cima com sotaque escocês.
Novamente bateram na porta. Agora era seu pai.
- Escuta aqui, ô safado, tu tem três segundos pra sair daí, ou eu vou entrar te matando. Três, tá me ouvindo bem?
F. correu e pegou uma foto sua no criado-mudo. O pai chutou a porta e entrou arfando. Segurava um pedaço de pau. F. estendeu a foto para os pais.
- Wait! Wait! It's me, dad. It's me, F.! I'm your fucking son!
- Fala direito, animal!
- O que você fez com meu filho? Ele tá com uma foto do F.!
- Fala o que você fez com meu filho agora. Fala!
- It's me. Look, it's me!
Seus pais não entendiam inglês. F. tentou ainda fazer mímica, sinal de igual entre ele e a foto, esfregando um indicador no outro.
- O quê? Você e meu filho...? Não... era só o que me faltava. Era por isso que ele nunca trouxe uma namorada para casa. Onde foi que eu errei, Deus, onde foi?
- No! Fuck! No!
Acordada pela gritaria, Bete, a irmã de F. aparece.
- Que barulheira é essa, gente?
- Seu irmão é viado.
- O quê? F... Puta merda, F.! F.! O Ewan Mc... F., tu pegou o Ewan McGregor? F., cadê você?
- No, fuck! Fuck! Listen...
Bete entendia um pouco de inglês e F. pôde contar o que havia acontecido. Todos se acalmaram um pouco. A mãe colocou a mão sobre sua testa para sentir se tinha febre. Não tinha. Ainda assim, resolveram ir a um hospital. Tiveram que ir a um hospital público, porque em todos os paticulares que foram, foi exigido, além da carteira do convênio, o documento de identidade. O médico que finalmente os atendeu não detectou nenhum problema na saúde do gringo.
Voltaram para casa. O pai ainda sentia dificuldades de aceitar que F. havia sofrido tal mudança sem mais nem menos. Falava pouco, mergulhado em dilemas. Será esse meu filho mesmo?, pensava. Não era possível. Ou talvez fosse, talvez ele estivesse usando drogas. As drogas transformam nossos filhos, pensava. A gente nunca acha que vai acontecer com a gente. Talvez, amanhã, ao acordar, tudo estará de volta ao normal. Esse pensamento foi silenciosamente compartilhado por toda a família.
Semanas se passaram sem que F. tivesse voltado a ser ele mesmo. Sua família já havia sido comunicada por telefone de que ele havia sido demitido por abandono do emprego. Os familiares e amigos que por acaso deram por sua falta foram informados de que ele tinha ido fazer um intercâmbio cultural de última hora. Com ajuda de Bete, F. respondia os e-mails que recebia perguntando sobre sua estadia na Escócia. Ele anexava fotos de Edimburgo encontradas pelo Google.
Enquanto isso, seus pais achavam melhor que não saísse, mas não sabiam por quê. Também deixaram de receber visitas, pelo mesmo motivo desconhecido. Por fim, a família toda decidiu não fazer mais do que o necessário na rua. Compraram pipoca e alugaram todos os filmes que puderam encontrar estrelados por Ewan McGregor. Na primeira semana, os mais recentes e fáceis de encontrar: Guerra nas Estrelas, A Ilha, Abaixo ao amor. O pai não se animou muito. Pelo menos seu filho aparecia com mulheres bonitas. Na segunda semana, os filmes já foram mais antigos. Trainspotting, por exemplo, fez o pai ter certeza que F. tinha um problema com drogas. Velvet Goldmine fez a mãe chorar.
F., entretanto, sentia-se oprimido. Não podia sequer atender o telefone. Não tinha mais contato com o mundo e cada vez mais queria sair. Sentia uma vontade irônica de ir ao cinema. E queria especificamente que fosse um cinema da rua Augusta. Com a ajuda da irmã, conseguiu enfim convencer os pais de que precisaria sair pelo menos para conseguir um documento para poder ser atendido por médicos do convênio particular. A história do intercâmbio fez Bete ter a ideia de fazer uma carteira de identidade de estudante num desses postos em shopping centers. Conseguiram sem dificuldade e foram ao cinema. Pagaram meia e entraram depois dos trailers.
O filme era ruim, uma comédia sem graça, e a sala apertada. Além disso, a porta de acesso ficava o tempo todo entreaberta, de forma a deixar uma fresta de luz justamente sobre a tela. Essa fresta não chegava a atrapalhar a projeção do filme. Mas toda vez que alguém desistia do filme e saía pela porta, isso fazia com que sua sombra também aparecesse na tela. Oito sombras já tinham saído da sessão segundo as contas de F. A nona sombra, porém, fez F. gelar.
Era uma silhueta inconfundível. Quem mais teria aquele perfil? Ninguém. F. sabia que aqueles formato quase ondulado de cabelo, aquela largura dos ombros, aquele comprimento de braços só podiam ser Débora. Débora, a garota por quem estava apaixonado. Sua melhor amiga. Nunca tivera coragem de abordá-la, de expor o que sentia. Ela o tratava como se fosse apenas um amigo entre outros. E nas última semanas, ele se viu forçado a se afastar totalmente dela. Nem por telefone poderiam conversar. Por isso, sentia que qualquer chance que pudesse ter de ficar com ela estava cada vez mais apagada. Passou alguns seguntos absorto antes de decidir correr atrás dela e projetar uma décima sombra sobre a tela, sem levar em consideração os outros espectadores que também haviam se incomodadado com as nove primeiras.
Saiu e gritou pelo nome dela. Só que já havia um zunzunzum de pessoas informadas da presença de Ewan McGregor no cinema. Pessoas querendo um autógrafo, uma foto com o celular, uma palavra. Foi imediatamente cercado. Débora também chegou perto do astro, e F. pôde olhar bem nos olhos dela. Não foi reconhecido. A cena toda durou menos de um minuto. Afastou-se da algomeração, que já o julgava arrogante, e voltou ao lado de sua irmã. Chorou baixinho.
De volta em casa, não conseguia dormir. Revirou todas as suas fotos. Quis se lembrar de quem era. Seria ainda F. ou já era Ewan McGregor? As últimas semanas foram confusas. Seus pais sentiam-se orgulhosos de ter uma estrela de cinema em casa. Seus amigos acreditavam que ele tinha decidido ir para a Europa sem mais nem menos, de uma hora para a outra, e não pareciam muito contentes nos poucos e-mails que havia trocado com eles. As pessoas na rua, em sua primeira aparição pública, tinham certeza de que ele era Ewan McGregor. Mesmo sua amiga mais próxima não o via para além do corpo que passara a habitar. Sentia-se ausente, morto, de certa forma. Tudo o que havia de F., naquele momento, era um nome em um documento falso.
O jornal da manhã na TV reprisou uma notícia curiosa que até então F. não havia visto. Na Escócia, um homem louco, que não falava inglês, havia assassinado Ewan McGregor e escondido seu corpo. Como ninguém fala português no Reino Unido, a polícia escocesa levou semanas para compreender que o homem um imigrante ilegal brasileiro sem documentos. A reportagem mostra então o homem, e F. reconhece seu corpo e sua voz, que gritava "Sou Ewan McGregor! Sou eu! Ewan! McGregor!".
Sabia que o homem era inocente. Acordou Bete e contou para ela o que acabara de ver na televisão. Bete, sonolenta, não entendeu bem, mas concordou quando ele disse que precisaria dela para acompanhá-lo imediatamente a algum consulado escocês ou algo do gênero. Não entendia muito bem de diplomacia e teria que pesquisar no Google enquanto Bete se aprontava. Mas não foi necessário. A Polícia Federal apareceu para interrogar a família do acusado de assassinar Ewan McGregor e se surpreendeu por encontrar o defunto vivo. A embaixada da Escócia no Brasil providenciou a volta do astro ao seu país. No escritório da Interpol em Edimburgo, F. e Ewan se abraçaram e choraram pela última vez.
Por Thiago F. * 16:06 *
sábado, 28 de novembro de 2009